domingo, 20 de dezembro de 2015

Anjo Mortal

(Pai e Filho em Skagen - Michael Ancher)

As lágrimas caem dos céus, deixando-se levarem pela janela, paralelas às minhas. Tudo ao meu redor é nostálgico. Vestígios de lembranças. Corro os olhos minuciosamente pela casa. Os momentos vividos me inundam, afogando os mais breves pensamentos, até transbordarem-se pelos meus olhos de novo.
A recordação de como sua breve ausência doía, impõe-se. A frustração acampava o dia quando o seu tranquilizante riso não nos cumprimentava. Sua dose abundante de alegria imobilizava qualquer elefante de tristeza. Como nos tornamos dependentes de quem é alegre.
Uma tosse escapa da minha boca e anuncia a chegada de uma virose. A lembrança de seus ensinamentos de curandeiro é imediata. Aprendi, dentre os muitos remédios,o para virose: mel, alho e limão. A extrair da natureza a saúde que essa oferece. Estudando-se a fundo, poderia a farmacologia supor a insuficiência ou ineficácia de alguns remédios, mas o elemento principal é invisível às lentes da ciência. Cuidado. Esse tentáculo do amor é a substância mor de qualquer remédio, tratamento ou cura. Quando o amor nos quer bem, nós nos queremos bem também.
Sinto-me levemente escorregar, e ao olhar para o chão de cera amarela, que quando encerado brilha mais que mina de ouro, resgato a lembrança de quando eramos colocado sobre os seus pés e dançávamos valsas, forrós e boleros na elegância de um ballet russo. A raça humana foi confeccionada sem a dádiva das asas e sofremos todos a frustração decorrente disso, Ícaro que o diga. Contudo, aprendi bailando com meu pai, que com ossos de imaginação e penas de felicidade, voa-se livre como um gavião selvagem. Discordem quantos ornitólogos quiserem, mas só voa quem está feliz. Como os pássaros. Pena pelas tristes galinhas e gratidão pelas baratas infelizes.
Dirijo-me ao quintal e sento numa cadeira para fumar um cigarro. O camelo estacionado na parede cospe a lembrança de quando ele regulou em exagero o freio dianteiro da bicicleta e ao testá-lo fui arremessado de joelhos ao chão e por pouco não fui pisado por essa.  Meu pai que estava a me olhar correu desesperado ao meu encontro e sentiu-se tristemente culpado. Ficou a lição. Por mais que tenhamos a boa intenção de ajudar o outro, nem sempre seremos capazes de fazê-lo ou de estarmos livres do insucesso, das consequências indesejadas ou da incompreensão.
Avisto, quase que escondida, a churrasqueira enferrujada e aposentada de sua utilidade e rememoro deliciosos domingos. Ela também deve sentir muita a falta dele. Presenciou inúmeras vezes, a pequenina chama do fósforo  nascer faminta e com rapidez correr para  abocanhar  a flor de pão molhada com álcool e prostrada num copo descartável colocado por meu pai.  E num processo de crescimento, muito mais ligeiro que o humano, tornar-se adulta e espaçosa para enfim, assar a carne a ser saboreada na tarde do domingo. Tarde, porque como todos nós sabemos almoçar cedo aos domingos pode causar morte instantânea.
Após a falta foi que aprendi o significado destes momentos e outros, em que meu pai se alegrava em construir e os quais tinha plena consciência do seu significado. A felicidade habita na simplicidade de tudo o que constitui a vida. É clichê já desbotado, mas é sincero. E por supormos saber é que o óbvio ululante caminha mudo e despercebido. É necessário desprendimento e atenciosa prática para que consigamos extrair a seiva da felicidade que bombeia nas coisas simples.
Nesses momentos, sentia uma alegria constante e sem razões claras percorrer o ambiente. Não estava na fartura de comida, na ausência de obrigações, na bebida distribuída nos copos nem na maresia dominical.  Estava em estarmos juntos, no cozinhar carinhoso para quem ama, nas músicas gostosas que compuseram as trilhas sonoras dessas vivências e que se constituem em instrumento de recordação. Estava e está nos gestos de gentileza e no sentimento prazeroso de estar rodeado de amores e apreciar a existência de suas presenças em nossas vidas.  
A descoberta é uma loteria, pode ser algo que traga tristeza, alegria ou ambos. Quando ouvi o sussurro da palavra maligno e a reação de meu pai, mesmo com a pouca vivência de uma criança, compreendi o significado. A morte anunciada traz consigo dor constante, mas também aprendizado. A convivência diária com a morte, mesmo que não a sua, ressignifica substancialmente como você encara a vida. Não viemos com prazo de validade e estamos sempre tentando camuflar a nossa fugacidade. Isto não é apologia à morbidez, é viver com sobriedade. Tornei-me a contradição de um fruto de casca ainda verde e interior já amadurecido.
Compreendi que não temos controle sobre a nossa morte. Da vida, temos em reduzido. As circunstâncias estão lançadas. Temos a faculdade de interpretá-las, posicionar-nos e agir. A condução do barco da vida nas águas do destino será de acordo à forma com que você usa sua faculdade. Há momentos tempestuosos e desoladores. Outros de ensolarada tranquilidade e paz. Saibamos navegar cada momento. A vida toca por reprodução aleatória e ininterrupta, delicie-se.

   Os aprendizados foram muitos, assim como as dificuldades em continuar a relembrá-los. Ponho bebida em um copo e acendo outro cigarro. As lágrimas continuam a escorrer como se tivessem a recompensar as que eu impedi de nascerem. Tento sair do museu onde as lembranças estão penduradas, mas me é muito difícil, nunca consegui equilibrar os sentimentos antagônicos que a saudade evoca. Seleciono algumas canções (“Ê Meu Pai”, “Retrovisor”, “Marvin”, “Vento no Litoral”, “Gostava Tanto de Você”, "Naquela Mesa"...) e coloco para ouvir. Enquanto a saudade rasga minha alma como uma navalha a escorrer pela pele, tento manter tão somente o sentimento de gratidão de ter amado e ter sido amado por um anjo mortal, que, muito além de um poderoso herói que usa a cueca sobre as calças, cumpriu a difícil missão de ser um exemplo de amor.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Última Conversa

(Auto Retrato Com a Morte Tocando Violino - Arnold Böcklin)

A noite estava amena. Charles, deitado na cama de seu quarto, observava a escuridão dos céus pela incompleta abertura da janela. Um vento calmo, porém marcante, escancarou as janelas, e abraçou Charles.  Um frio cadavérico lhe excitou os poros. Alguém entrou pela porta e sentou-se na poltrona ao lado da cama:
- Boa noite Charles.
- Boa noite.  Já esperava sua visita.
- Ora essa, não sabia que eu era tão previsível.
- Posso fumar um cigarro não é mesmo? - enquanto falava, inclinou-se à escrivaninha para apanhar um cigarro. - afinal de contas, que diferença faz mais?
- Quem sou eu pra ti dizeres algo?
Rolou a engrenagem do isqueiro e o fogo fez o resto. Deu uma leve tragada, saboreando, pausadamente, cada momento. A fumaça ao sair, desencadeou uma crise de tosses, que finalizou com um canal de sangue escorrendo pela boca, como uma macabra cachoeira.
- Como deve ser do lado de lá? – Perguntou Charles, limpando o sangue, com o lençol da cama, e dando outra desapressada tragada.
- Nunca morri pra saber. Charles quis dar uma gostosa risada, daquelas bem barulhentas e sinceras, mas o máximo que conseguiu foi inclinar o canto direito da boca.
- Tanto faz, a ideia de nenhum dos dois nunca me agradou muito.
- Essas coisas jamais lhe preocuparam Charles. Pessoas que se preocupam com tais coisas, não vivem como você, ou melhor, não vivem.  Charles ficou em silêncio. Talvez pensando no passado, talvez pensando se haveria tempo para arrependimentos, ou apenas tentava respirar. Outra seqüência de tosses esmurrou seus pulmões, quebrando o silêncio que reinava.
- Me dê mais alguns minutos de lembranças, é tudo que me sobra no fim...
- Não posso te permitir esse alívio. Você já escapou muitas vezes de mim. Mas realmente gostei de você Charles. Você é um cara legal. Te darei mais 5 segundos.
O ar foi ficando cada vez mais raro nos pulmões de Charles, assim como a luz em seus olhos. De todas as aventuras e loucuras que vivera, nenhuma ficou como ultima lembrança. Essa foi sim, uma de sua infância. Devia ter por volta de uns 10 anos. Corria na garupa da moto com seu pai. A brisa forte causada pela velocidade lhe refrescava do verão, e Charles com seus curtos braços tentando fazer com que eles se encontrassem no umbigo de seu pai, sem obter êxito. Mas não importava, era mais por capricho que ele queria, pois ele se sentia seguro. Realmente protegido, e feliz. É nesses momentos sem justificativas e razões que a felicidade invade. Tão breve como o alívio da sombra, do remédio ou da morte.