terça-feira, 28 de julho de 2015

Museu de Grandes Novidades



(Operário - Cândido Portinari)

O chicote mergulhou no ar como uma cobra movendo-se pela terra, encontrou a negra pele suja de Martin e deu-lhe um lascivo beijo, arrancando suspiros e pedaços ensangüentados de carne. O corpo, mesmo cansado de tempos idos, devido à surpreendente chicotada, despertou. Também não havia escapatória, um alarme berrando às 5 da manhã, aviva a memória, junto à ópera dos galos, de que Nelson precisava trabalhar se não a fome faria dele e de sua família, reféns.
Lavou o rosto junto à água barrenta presa na bacia. Sentia-se como o liquido ali despojado: estragado. Impossibilitado do que deveria ou poderia ser. Preso. Sem possibilidades de escapatória. Gradativamente, tendo uma parte sua se esvaindo. Uma hora não iria sobrar nada. Deveria ir, as conseqüências não são nada macias quando se chega atardado.
Enquanto Nelson seguia para o trabalho, pensava sobre o quanto se sentia saturado do que fazia. Mas o que era muito pior era não poder se livrar disso tudo. Era um escravo. Não se via de outra forma. Até trabalhava a mesma média diária. Tinha lido sobre num livro de história da escola. Jamais esquecera, pois tinha associado isso ao papai. Ele malmente o via. Quando o tinha, estava muito desgastado e melancólico para estar com ele ao invés de um copo de bebida. Agora, agia da mesma forma. Talvez tenha sido a única herança que herdara.
Martin sentia o chicote dos séculos reiteradamente lhe tocar as costas, as cicatrizes, a ferida viva exposta ao sol. Como era pesado aquele açoite. Sentia-o no sangue que lhe fugia do corpo e coloria a plantação de algodão. Do alto do cavalo, o negro capataz branda com fúria e ódio que não lhe pertence: “mais rápido seus negros malditos, mais rápido”. Com a mesma fúria e ódio alheio ruge o supervisor atrás de sua prancheta aos operários: “não fiquem de moleza! sem meta, sem emprego”. Nelson bate mais forte o martelo, assim como o sol enjaulado no caldeirão sopra larva em seu corpo suado.
O senhorzinho, herdeiro das terras de gerações, diariamente fazia seu fervoroso discurso bíblico a Martin e seus “iguais”. “Vocês, negros, são animais desnivelados e desalmados. A única coisa que receberam de Deus foi um crânio chato e a docilidade de serem dominados. Assim como seus ancestrais, nasceram pra servir”.
O patrão de Nelson, dono de fábrica há épocas em sua família, defende com garra titânica, em todos os nobres espaços que freqüenta, “que há muito não há mais antinomias. As misérias, se existem, são por culpa de quem é preguiçoso de mais para eliminá-las”.
O corpo escravo do cansaço rende-se à cama de pregos. A cratera do teto emoldura a noite, expondo um quadro negro e iluminado. Os olhos acostumados ao tristonho choro experimentam doces lágrimas. A esperança de dias melhores, invade-lhes a alma.


segunda-feira, 27 de julho de 2015

Piece of Shit

(Homem Velho com a Cabeça em Suas Mãos - Van Gogh)

De olhos abertos e sentimentos rasgados, vou por ai arrastando a minha alma. Confundo a localização da minha sombra e corpo. Esqueci de tomar a minha dose diária de ilusão. Pode ser que tenha tomado e não esteja mais fazendo efeito. A realidade crua talvez seja saborosa para quem gosta de sushi. Vou me lembrando das canções que me avisam de que viver é que é foda, desnecessário e perigoso. Ironicamente, as suas irmãs me dizem que viver é o maior delírio, alucinação e gozo. Decidam-se.
Passeio pela calçada com a sensação de que caminho pela corda bamba. Distribuo cortesia e simpatia. Será que não enxergam as linhas segurando o sorriso? Faço o esboço de um choro, mas as minhas lágrimas não têm coragem de pintarem a face e secarem ao sol furioso. Engano meu, devem ser espertas de mais para morrerem em vão.
Assisto emocionado à fabulosa tragédia grega que é a vida. Sempre gostei mais de filmes com doses cavalares de humor. Uma ambulância transporta um defunto do descaso. O som da sirene me avisa da possível diminuição populacional. Uma vida desconhecida que pode se esvair. Uma vida. Mas, as pessoas muito preocupadas estão fudendo para isso. Questiono-me se pôr um filho nesse mundo é um ato de amor ou egoísmo. Uma criança passa por mim correndo livre e com um sorriso sincero. A alegria temporária que me invade, soluciona a questão.
Coloridos escravos modernos seguem para as plantações de concreto. O mau passado entalou na garganta. Exageraram no sangue. Maldito momento em que li o primeiro livro de poesia. Infantil. Maldito Einstein. Oh!Doce ilusão! Pergunto-me quando ficarei louco. Ou será que a insanidade já tomou conta? Não... eles é que estão loucos. Estabelecendo meus parâmetros, jamais enlouquecerei.
Vejo pessoas cuspirem ódio umas às outras. A culpa é sempre e somente do outro. Todos armados com escudos mentais e espadas ignorantes. Os que mais precisam de amor, são os que menos têm. Óbvio ululante. Ninguém parece ouvir. Onde falta amor, ganha espaço a dor. Onde há dor, o ódio reina. Galos da mesma classe brigando entre si. Das feridas escorrem lucros. Não são dos galos. Estes, treinados para digladiarem até a morte, às vezes arranham os donos. Uma bala na testa ou prisão. Os outros galos, estupidamente, sorriem.
Continuo a caminhar, pesaroso se devo continuar ou retornar para debaixo dos lençóis. Como é apassivador o cheiro de amaciante. Ouço discutirem o banal com seriedade, o sério com banalidade. Correm a vida inteira atrás do ouro de tolo. Inútil. Joguei o meu aos ratos.  Na busca estúpida, perdem o sabor da comida, o cheiro da flor. Não riem do fácil. Sem abraços e nem braços. A chuva é inimiga. O sol incômodo.
Tento juntar os cacos da minha alma, montar o quebra-cabeça de meus pensamentos. Tudo tem sentido. Nada faz sentido. Peguei a direção errada em algum momento. Por que deveria seguir as placas? Sinto a morte caminhar paralela a mim, pôr a mão em meus ombros e perguntar: tudo bem? Pressinto minha morte nos carros apressados, nas armas violentadas, no meu coração rebelde, nas coisas estúpidas. Tenho medo. Sim!!Medo!!Quem lhe disse que eu quero morrer?
Se ao ler estas linhas esteja pensando em pegar o revólver na gaveta, ou onde quer que esteja, ou em buscar a navalha no banheiro, lembre-se de dar o tiro na nuca, no primeiro caso, e cortar o pulso horizontalmente, no segundo caso.  Se continua a ler, lembre-se que as folhas secas caem das árvores para que o vento leve o que morreu. Encontre na lama o seu banho de sais aromatizantes. Talvez na primavera nasçam flores coloridas de vida e cheirosas de sabor. Talvez brote u(n)m(s) amor(es). Talvez um conto ou uma nova música antiga nos salve. Talvez. 

Alma Cancerosa

(Saint-Paul Asylum, Saint-Rémy - Van Gogh)

Uma tira de sol invadiu a janela e beijou-lhe a face. O incômodo o despertou. Mas apesar de acordar, Raul queria insistir em dormir, pois os sonhos eram muito mais queridos que a realidade. Tentou com forças titânicas fazer com que o espírito convencesse seu corpo disso, segurando-o preguiçosamente. Não adiantou, o organismo já alienado pela rotina o expulsou da cama.
Em pé, sentiu a cabeça, que a pouco doía superficialmente, agora parecia estar recebendo marteladas vazias de qualquer compaixão, e as tripas que estavam a dançar loucamente um tango argentino, confessavam vestígios da noite anterior. Tentou comer alguma algo, mas o corpo ainda embriagado recusou. Enquanto tentava se equilibrar, avistou o escravocrata do tempo, que pendia torto na parede acusando o seu atraso para o trabalho. Nunca gostou do que fazia. Não desistia, porque assim como as vacas precisam de seu capim, ele precisava do seu.  
Enquanto esperava o micro-ônibus lotar, o motorista estacionou o veículo numa sombra projetada por uma grande árvore. Um vento fresco penetrou as janelas e uma lembrança infantil lhe ocorreu. Tinha por volta de uns 10 ou 12 anos e descansava, com os amigos, de uma partida de futebol, embaixo de um pé de algaroba, refrescando-se com gelados feitos por uma velha porca, que provavelmente já devia ter virado banquete de vermes. O vento que refrescava os corpos suados parecia-lhe ser o mesmo que bagunçava seus cabelos no veículo.  “Onde estariam aqueles filhos da puta? vivos? felizes? Eu estou?”.
Outras lembranças começaram a emergir, e de súbito, uma angústia lhe abraça a alma. As coisas ao seu redor, ligeiro e gradativamente vão perdendo seu sentido.  Um sentimento fatalista assopra pra longe a racional segurança. Pelo vidro da janela Raul avista um inseto verde esmagado na calçada. “A esperança está morta. Mataram ou ela se matou?”. Enquanto pensa, a efusão de pensamentos fatalistas continua a lhe entupir. Quando foi que perdera o controle de sua vida? Ou melhor, ele já existiu alguma vez? O seu redor lhe parece estranho e o fere dolorosamente
Do assento, consegue sentir o gélido abandono do mendigo, de olhar perneta, que tenta sustentar a pedinte tigela assim como a sua vontade de viver. E cada transeunte que passa e não lança uma moeda, arranca-lhe porções de ar. As pessoas, sejam as que caminham apressadas para o abatedouro, as que se espremem nos ônibus ou as que se matam gradativamente em suas misérias particulares, apresentam-lhe faces sinceras.  Palhaços descontentes. Até o pobre animal, esbelto de fome, que sem êxito procura um olhar atento para acalmar a fome e a solidão, lhe devora.  
O motorista liga o motor e começa a mover-se pela estrada, tão iludido de sua liberdade quanto o veículo. Como queria poder fazer algo o Raul, mas ele, meus caros, sabe de sua impotência. E ao olhar o terço, com Cristo crucificado, pendurado, sente-se compreendido. Isso lhe levou a lembrar de Deus, de que este, definitivamente, não passa de invenção.
Demorara muito para assassinar mentalmente o Senhor de que lhe fala o livro santo. O medo de estar errado e ser inquisitorialmente castigado lhe atormentava. Depois, com o escorrer do tempo, floresceu o entendimento de que não fazia diferença acreditar ou não no divino. Em verdade, estamos apenas jogados pelo mundo, tentando de alguma forma não sermos engolidos por nossas desgraças.  Sua convicção o assustou como outrora, novamente o desejo de ser um cara de fé enferrujada passou pela cabeça, porém, sabe que não é mais possível.
As lágrimas parecem querer saltar os olhos. Mas ele sabe que elas não irão. Tão tímidas e anti-sociais suas lágrimas, sempre buscando se libertarem no trono do banheiro, no abafo do lençol, em ruas desertas de luz e pessoas. Ninguém as veem, ninguém às sentem. Raul passa o avesso da mão nos olhos, tentando enxugar as lágrimas que não caíram.
Na volta do trabalho, enquanto as pessoas conversam sobre seus ópios, Raul tenta construir uma compreensão: a de que cada pessoa tem uma morte engarrafa dentro de si. Na sua maioria, a morte repousa em um sono profundo, arranhando raramente com a ponta da unha a garrafa e só se libertando quando chega a hora de o indivíduo partir. Mas no ínfimo resto ela não se comporta assim. Está constantemente acordada, valsando e batucando nas paredes de sua prisão, mostrando-lhes um mundo descortinado.  Alguns buscam alívio dessa tormenta mergulhando de alma e alma nos remédios, nas drogas, nas anestesias sociais. Outros vomitam o incômodo nas artes, nas pessoas, na vida. Ainda há os que não agüentam a tortura mental e estouram os miolos.
Ao chegar em casa, Raul desmonta no sofá, folga a gravata como se estivesse quebrando correntes seculares de escravidão. Logo após, retira o par de sapatos e as meias, e por um breve instante, sente toda a pressão mundana dar trégua. Sai a andar de pés nus pela casa, contatando com o frio calmo do chão, como adorava fazer quando pequeno. O resgate desta lembrança infantil rememora em cascata outras lembranças de menino e a nostalgia lhe entorpece a alma de saudade. E tristeza, tristeza pela ausência de tempos idos, que por mais que se tente repetir, não se consegue.
Enquanto caminha perdido em seu próprio lar, Raul se depara com o espelho da sala e se da conta de que sua barba atingiu níveis esquerdistas. Como não se sabe mais de que lado estão certos barbudos, Raul resolve cortar os cabelos faciais. Despe-se na porta do banheiro e começa a preparar os instrumentos necessários para se cortar uma barba à moda antiga, como fazia o seu pai, e antes deste, seu avô.
Ao por a lâmina no barbeador, Raul acaba, acidentalmente, cortando-se, o sangue vivo a escorrer pela mão lhe traz uma velha idéia que jamais conseguiu concretizar. Posiciona a navalha ao lado do pescoço, ao passo em que se confronta mentalmente sobre qual será sua próxima ação. A luz da lâmpada incide na periferia do metal frisando a capacidade de perfuração. Nunca soube responder se é um ato de coragem ou covardia. Conclui que ainda há pelo que se viver. Pudins caramelizados. Canções compreensivas. Manhãs mornas. Paixões...
Raul abre o registro e a chuva particular desliza pelo corpo como uma enxurrada levando tudo que está pela superfície. Como queria que essas águas alagassem sua alma e a lavasse. Mas, com pesares, ela apenas limpa o corpo. Isso já é de grande alívio. Enquanto se enxuga, pensa em que deveria escrever sobre essas coisas que tanto o incomoda.
Depois disso, dirige-se até a sala, enrolado na toalha, põe um disco de Belchior na vitrola, e enquanto a agulha excita o vinil ao grito, Raul enche um copo com whisky, tragando-o em um golada, como remédio ás dores, para enchê-lo novamente. Despoja-se no sofá e isola os ouvidos no som. “Me dizem que estas músicas me levarão a morte, mas não entendem, elas zelam minha sobrevivência. Livram-me da loucura e do suicídio. São facas afiadas abrindo, com precisão cirúrgica, a ferida da minha alma, retirando o tumor que a habita. não compreendem”. Porém, Raul sabe que se criou metástase há muito, e o câncer sempre volta. Não há solução se não a morte.
Os amigos lhe ligam para que ele apareça. Após muita relutância, Raul se veste e vai ao bar. Estão todos a tecerem críticas sobre a humanidade, as artes, a vida alheia. Estão a rir de piadas desgraçadas e das desgraças. A mente de Raul não está interessada na conversa. Está lá com o mendigo de corpo e barriga ao relento e procura entender por que nos alimentamos de miséria. Está pensando em dona Maria, que enfrenta o futuro a cada minuto.  Apesar do rodeio de pessoas, sente uma solidão crescente lhe assolar.
Mesmo diante de protestos e clamores, Raul se despede e vai embora, com uma saudade pródiga do lar. Na solidão das ruas, com uma garrafa na direita e um cigarro na esquerda, o canto íntimo lhe escapa a boca, tão natural quanto seus batimentos cardíacos. Suas lagrimas também não se contêm. O cantar, indiferente aos gritos das casas e ao sexo dos felinos, espalha-se na escuridão, tão vivo quanto uma flor arrancada, uma paixão de fraldas.

Deita na cama, como um gladiador beijando as areias do coliseu. O álcool sempre foi o seu melhor sonífero contra a insônia. Enquanto as pálpebras vão de encontro, Raul pensa. Pensa no arrependimento de que talvez tivesse uma mulher que lhe entenda no bar, mas ele fugiu. Pensa em escrever sobre essas coisas que tanto o incomoda. Dorme tentando convencer-se de que ainda há esperança, de que amanhã  será um dia melhor. Talvez. Talvez Raul.

A Intimidade é Algo Pessoal

(Retrato de Taryn Szpilmann - Pintura em tinta óleo - por Judite Pimentel)

Dois corpos jogados na cama. Corpos semi-mortos rodeados de ar pouco e gasto. Extrapolaram os limites do proibido, fizeram do kamasutra um livro inocente. Ele pegou um cigarro para si e arriscou dar um a ela, que, querendo ou não, aceitou. Ficaram por uns instantes olhando o acaso, imersos em nostálgicos pensamentos, tentando de alguma forma individualizar a unificação corporal do momento anterior.
Mas o prazer é finito, pois caso contrário não poderia responder por esse nome e assim, foram aos poucos voltando à realidade e a sentir suas respectivas pernas. Enquanto a adrenalina se reprimia. Matheus começava a reparar os móveis a sua volta e numa dessas pinceladas reparou um amontoado de folhas sobre a escrivaninha, que pareciam jogadas, mas não de um modo qualquer, de um jeito suave e desajeitado.
Para “quebrar o gelo”, que por incrível que pareça, havia se formado, ele resolveu perguntar do que se tratava aqueles papéis com uma imagem tão convidativa. Ela friamente respondeu “são escritos meu”. Matheus, tentando estabelecer uma comunicação, sugeriu que lesse algum para ele. E ela de forma desprezível disse que “aí já é intimidade de mais”.

sábado, 25 de julho de 2015

A Morte de uma Puta Mulher (ou O Anel e o Broche)



(O Nascimento de Vênus - Sandro Botticelli)


Os céus choram serenamente. Os pingos d’água beijam a face terrena com a mesma cadência que as lágrimas escorrem pelo chão da pele quando a dor da saudade é grande e elas se multiplicam sem qualquer esforço humano, como se soubessem a hora de entrar em cena. O sol encobre-se de nuvens negras não querendo visualizar a morte de outra estrela, assim como nos escondíamos por detrás dos lençóis para se esconder de algo ou por medo de enxergar a realidade. E os pássaros enfileiram-se pelos galhos das árvores que de tão imponentes, contrastam-se com o ambiente, os humores e moradores. Estão a cantar, em sintonia orquestral, um fado português de tamanha melancolia, que caso se personificasse, o suicídio seria imediato.
Todos estão presentes para consagrar a finitude da vida e saborear o subliminar alívio da morte alheia, com a exceção de João e Paulo, que foram para constatar se realmente poderia morrer pessoa tão viva, e também, para despedirem-se, pela última vez, daquela beleza irradiante que iluminara suas noites e colorira seus dias, respectivamente.
Ambos carregam um buquê de margaridas e violetas enquanto os demais levam crisântemos e desconhecimento. Estão lado a lado perdidos em agradáveis lembranças, sem dar qualquer fiapo de atenção às palavras do padre, que alheio ao ateísmo da morta, discursa sobre os benefícios do paraíso e os pecados da carne, sem saber que aquela que ali por perto, dorme sem sonhar, descobrira e habitara nos pecados da carne o paraíso.
João está prostrado ao lado de Paulo, ambos com os olhos fixos na amada. Expressam em suas faces uma morte compartilhada. De fato está a serem enterrados pedaços de ambos que sobreviverão nos dois apenas como reflexos do verdadeiro. Paulo começa a falar em tom baixo, como um sussurro, como se o pensamento se convertesse em oralidade sem a permissão do proprietário:
-  Embora esteja... parece tão...
- Viva – completou o João. Ainda consigo vê-la em seu particular caminhar,  como se...
- Tivessem correntes quebradas pelos pés frisando a sua liberdade.
- Isso! ... E seu olhar...mesmo que as pálpebras cobrem ele agora ainda consigo sentir!...o quão apassivador ele era...
- É como se guerras, brigas, desavenças, qualquer conflito conseguissem ser resolvidos por aquele olhar...
- louca...- disse João, acompanhado de um riso bobo e doce.
-louca... – repetiu o Paulo com o mesmo sorriso.
Paulo a amava sob a luz diurna, ao som clássico de Wagner, Mozart e Cia., num ritmo suave e doce. Os corpos atritavam não como quando se quer acender um fogo de forma primitiva, mas como um carinho, um caminhar desapressado e tranqüilo. Assistiam a jogos de futebol com uma rivalidade de guerra, mas ao fim dos embates, reconciliavam-se como crianças após uma briga boba. Discutiam política, ideologias e atitudes, em meio a cervejas, cigarros e afagos. Dava o horário de trabalhar do Paulo e ela partia.
João a amava sob o brilho do luar. Três, quatro ou cinco cigarros de maconha e estavam rindo como loucos de bobagens e absurdos, depois deitavam-se em paralelo e faziam individuais viagens espaciais, enquanto Pink Floyd ou Beatles recitava a trilha sonora. Depois se mandavam para os bares, praças e outros lugares, como crianças perdidas em um mundo adulto sem entender as regras. Ao fim do safári, entregavam-se à um sexo experimental, com pitadas de sadismos e do inusitado, até o sono arrebatar os corpos cansados de almas satisfeitas.
“Sempre gostei desse cheiro de terra molhada...vivi, morri, e daí? Jamais encarei a morte como o fim de alguma coisa. Enxergava-a em relação à vida, como enxergo a fome em relação à comida: tempero amplificando o sabor. Os lembretes da fome e da morte que me eram entregues, davam-me aviso de que deveria comer e viver... e amar! Sim! Amar!!Eu era o verbo amar encarnado. Antes de ser, eu era amor. Amor e liberdade. Um não existe, verdadeiramente, sem outro. Necessitam-se reciprocamente. Amor sem liberdade é sofrimento, liberdade sem amor é insignificância.
E assim amei... amei o João e o Paulo, o José, o Mário, o Carlos... amei torradas recheadas com manteiga natural, gelatinas com leite condensado, e outras picas, outras bocetas, peles, lábios, cabelos, olhos, lugares. Amei o óbvio e o implícito, ser puta e ser santa...amei até o ódio, afinal, este nada mais é que  um grito desesperado por amor. Amei as dores, vestígios de amores, amei a Dolores. Amei sois tropicais, dominicais, domingos bestiais, luas cheias, noites vazias. Amei amar. E agora? Agora não sei... sei que não morrerei...viverei nos amores... e nas dores.”
Seria um determinismo e uma omissão medíocre se eu vos dissesse que o João apenas a via às noites e o Paulo aos dias. Claro que não. Mas, em boa parte, diante das circunstâncias, era assim que acontecia. Pior ainda é se vos dissesse que ela apenas amava os dois ou que diariamente os via. As vezes, só queria deleitar-se com a solidão, desfrutando de sua melhor companhia, ela mesma. Nesses momentos, partia em cruzadas espirituais tentando conhecer-se ou então sonegava-se chorando em posição uterina. Em outras vomitava poemas, textos ou qualquer indigestão incômoda. Era uma louca e talvez por essa razão é que sabia viver.
O padre, ao fim do seu monólogo indiferente às singularidades, faz uma oração e encerra. Aos poucos, as pessoas jogam os buquês de crisântemos e vão embora, até que resta apenas o João e o Paulo. Um vento acalentador corre pelo dormitório dos mortos. Hesitam em jogar os buquês, como se nas flores restassem o ultimo elo vivo entre eles e ela. “Que bobagem”. Pensaram, depois de certo tempo. Flores a uma flor.  De adubo viverá. De amor também.
Dão as costas à amada. Olham-se nos olhos buscando cumplicidade. Apertam as mãos fortemente. Mais uma vez, um parecia ao outro, o ultimo elo vivo. João achou familiar o anel no dedo do Paulo. Este, achou familiar o broche na blusa do João. Após um aperto de mão parecido com uma “queda de braço”, seguem caminhos diferentes. O Coveiro finalmente aparece. Enquanto joga a terra de volta a seu lugar, apagando ela como uma bucha correndo pelo quadro riscado, pensa o coveiro sobre quando terá outro homem em seu lugar, enterrando o seu corpo também. Tão bem.