segunda-feira, 27 de julho de 2015

Alma Cancerosa

(Saint-Paul Asylum, Saint-Rémy - Van Gogh)

Uma tira de sol invadiu a janela e beijou-lhe a face. O incômodo o despertou. Mas apesar de acordar, Raul queria insistir em dormir, pois os sonhos eram muito mais queridos que a realidade. Tentou com forças titânicas fazer com que o espírito convencesse seu corpo disso, segurando-o preguiçosamente. Não adiantou, o organismo já alienado pela rotina o expulsou da cama.
Em pé, sentiu a cabeça, que a pouco doía superficialmente, agora parecia estar recebendo marteladas vazias de qualquer compaixão, e as tripas que estavam a dançar loucamente um tango argentino, confessavam vestígios da noite anterior. Tentou comer alguma algo, mas o corpo ainda embriagado recusou. Enquanto tentava se equilibrar, avistou o escravocrata do tempo, que pendia torto na parede acusando o seu atraso para o trabalho. Nunca gostou do que fazia. Não desistia, porque assim como as vacas precisam de seu capim, ele precisava do seu.  
Enquanto esperava o micro-ônibus lotar, o motorista estacionou o veículo numa sombra projetada por uma grande árvore. Um vento fresco penetrou as janelas e uma lembrança infantil lhe ocorreu. Tinha por volta de uns 10 ou 12 anos e descansava, com os amigos, de uma partida de futebol, embaixo de um pé de algaroba, refrescando-se com gelados feitos por uma velha porca, que provavelmente já devia ter virado banquete de vermes. O vento que refrescava os corpos suados parecia-lhe ser o mesmo que bagunçava seus cabelos no veículo.  “Onde estariam aqueles filhos da puta? vivos? felizes? Eu estou?”.
Outras lembranças começaram a emergir, e de súbito, uma angústia lhe abraça a alma. As coisas ao seu redor, ligeiro e gradativamente vão perdendo seu sentido.  Um sentimento fatalista assopra pra longe a racional segurança. Pelo vidro da janela Raul avista um inseto verde esmagado na calçada. “A esperança está morta. Mataram ou ela se matou?”. Enquanto pensa, a efusão de pensamentos fatalistas continua a lhe entupir. Quando foi que perdera o controle de sua vida? Ou melhor, ele já existiu alguma vez? O seu redor lhe parece estranho e o fere dolorosamente
Do assento, consegue sentir o gélido abandono do mendigo, de olhar perneta, que tenta sustentar a pedinte tigela assim como a sua vontade de viver. E cada transeunte que passa e não lança uma moeda, arranca-lhe porções de ar. As pessoas, sejam as que caminham apressadas para o abatedouro, as que se espremem nos ônibus ou as que se matam gradativamente em suas misérias particulares, apresentam-lhe faces sinceras.  Palhaços descontentes. Até o pobre animal, esbelto de fome, que sem êxito procura um olhar atento para acalmar a fome e a solidão, lhe devora.  
O motorista liga o motor e começa a mover-se pela estrada, tão iludido de sua liberdade quanto o veículo. Como queria poder fazer algo o Raul, mas ele, meus caros, sabe de sua impotência. E ao olhar o terço, com Cristo crucificado, pendurado, sente-se compreendido. Isso lhe levou a lembrar de Deus, de que este, definitivamente, não passa de invenção.
Demorara muito para assassinar mentalmente o Senhor de que lhe fala o livro santo. O medo de estar errado e ser inquisitorialmente castigado lhe atormentava. Depois, com o escorrer do tempo, floresceu o entendimento de que não fazia diferença acreditar ou não no divino. Em verdade, estamos apenas jogados pelo mundo, tentando de alguma forma não sermos engolidos por nossas desgraças.  Sua convicção o assustou como outrora, novamente o desejo de ser um cara de fé enferrujada passou pela cabeça, porém, sabe que não é mais possível.
As lágrimas parecem querer saltar os olhos. Mas ele sabe que elas não irão. Tão tímidas e anti-sociais suas lágrimas, sempre buscando se libertarem no trono do banheiro, no abafo do lençol, em ruas desertas de luz e pessoas. Ninguém as veem, ninguém às sentem. Raul passa o avesso da mão nos olhos, tentando enxugar as lágrimas que não caíram.
Na volta do trabalho, enquanto as pessoas conversam sobre seus ópios, Raul tenta construir uma compreensão: a de que cada pessoa tem uma morte engarrafa dentro de si. Na sua maioria, a morte repousa em um sono profundo, arranhando raramente com a ponta da unha a garrafa e só se libertando quando chega a hora de o indivíduo partir. Mas no ínfimo resto ela não se comporta assim. Está constantemente acordada, valsando e batucando nas paredes de sua prisão, mostrando-lhes um mundo descortinado.  Alguns buscam alívio dessa tormenta mergulhando de alma e alma nos remédios, nas drogas, nas anestesias sociais. Outros vomitam o incômodo nas artes, nas pessoas, na vida. Ainda há os que não agüentam a tortura mental e estouram os miolos.
Ao chegar em casa, Raul desmonta no sofá, folga a gravata como se estivesse quebrando correntes seculares de escravidão. Logo após, retira o par de sapatos e as meias, e por um breve instante, sente toda a pressão mundana dar trégua. Sai a andar de pés nus pela casa, contatando com o frio calmo do chão, como adorava fazer quando pequeno. O resgate desta lembrança infantil rememora em cascata outras lembranças de menino e a nostalgia lhe entorpece a alma de saudade. E tristeza, tristeza pela ausência de tempos idos, que por mais que se tente repetir, não se consegue.
Enquanto caminha perdido em seu próprio lar, Raul se depara com o espelho da sala e se da conta de que sua barba atingiu níveis esquerdistas. Como não se sabe mais de que lado estão certos barbudos, Raul resolve cortar os cabelos faciais. Despe-se na porta do banheiro e começa a preparar os instrumentos necessários para se cortar uma barba à moda antiga, como fazia o seu pai, e antes deste, seu avô.
Ao por a lâmina no barbeador, Raul acaba, acidentalmente, cortando-se, o sangue vivo a escorrer pela mão lhe traz uma velha idéia que jamais conseguiu concretizar. Posiciona a navalha ao lado do pescoço, ao passo em que se confronta mentalmente sobre qual será sua próxima ação. A luz da lâmpada incide na periferia do metal frisando a capacidade de perfuração. Nunca soube responder se é um ato de coragem ou covardia. Conclui que ainda há pelo que se viver. Pudins caramelizados. Canções compreensivas. Manhãs mornas. Paixões...
Raul abre o registro e a chuva particular desliza pelo corpo como uma enxurrada levando tudo que está pela superfície. Como queria que essas águas alagassem sua alma e a lavasse. Mas, com pesares, ela apenas limpa o corpo. Isso já é de grande alívio. Enquanto se enxuga, pensa em que deveria escrever sobre essas coisas que tanto o incomoda.
Depois disso, dirige-se até a sala, enrolado na toalha, põe um disco de Belchior na vitrola, e enquanto a agulha excita o vinil ao grito, Raul enche um copo com whisky, tragando-o em um golada, como remédio ás dores, para enchê-lo novamente. Despoja-se no sofá e isola os ouvidos no som. “Me dizem que estas músicas me levarão a morte, mas não entendem, elas zelam minha sobrevivência. Livram-me da loucura e do suicídio. São facas afiadas abrindo, com precisão cirúrgica, a ferida da minha alma, retirando o tumor que a habita. não compreendem”. Porém, Raul sabe que se criou metástase há muito, e o câncer sempre volta. Não há solução se não a morte.
Os amigos lhe ligam para que ele apareça. Após muita relutância, Raul se veste e vai ao bar. Estão todos a tecerem críticas sobre a humanidade, as artes, a vida alheia. Estão a rir de piadas desgraçadas e das desgraças. A mente de Raul não está interessada na conversa. Está lá com o mendigo de corpo e barriga ao relento e procura entender por que nos alimentamos de miséria. Está pensando em dona Maria, que enfrenta o futuro a cada minuto.  Apesar do rodeio de pessoas, sente uma solidão crescente lhe assolar.
Mesmo diante de protestos e clamores, Raul se despede e vai embora, com uma saudade pródiga do lar. Na solidão das ruas, com uma garrafa na direita e um cigarro na esquerda, o canto íntimo lhe escapa a boca, tão natural quanto seus batimentos cardíacos. Suas lagrimas também não se contêm. O cantar, indiferente aos gritos das casas e ao sexo dos felinos, espalha-se na escuridão, tão vivo quanto uma flor arrancada, uma paixão de fraldas.

Deita na cama, como um gladiador beijando as areias do coliseu. O álcool sempre foi o seu melhor sonífero contra a insônia. Enquanto as pálpebras vão de encontro, Raul pensa. Pensa no arrependimento de que talvez tivesse uma mulher que lhe entenda no bar, mas ele fugiu. Pensa em escrever sobre essas coisas que tanto o incomoda. Dorme tentando convencer-se de que ainda há esperança, de que amanhã  será um dia melhor. Talvez. Talvez Raul.

2 comentários:

  1. "Dorme tentando convencer-se de que ainda há esperança, de que amanhã será um dia melhor.". Raul, ainda que os dragões não sejam moinhos de vento, não faz diferença. Nunca faz, nunca fez, nuca fará.

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