sábado, 25 de julho de 2015

A Morte de uma Puta Mulher (ou O Anel e o Broche)



(O Nascimento de Vênus - Sandro Botticelli)


Os céus choram serenamente. Os pingos d’água beijam a face terrena com a mesma cadência que as lágrimas escorrem pelo chão da pele quando a dor da saudade é grande e elas se multiplicam sem qualquer esforço humano, como se soubessem a hora de entrar em cena. O sol encobre-se de nuvens negras não querendo visualizar a morte de outra estrela, assim como nos escondíamos por detrás dos lençóis para se esconder de algo ou por medo de enxergar a realidade. E os pássaros enfileiram-se pelos galhos das árvores que de tão imponentes, contrastam-se com o ambiente, os humores e moradores. Estão a cantar, em sintonia orquestral, um fado português de tamanha melancolia, que caso se personificasse, o suicídio seria imediato.
Todos estão presentes para consagrar a finitude da vida e saborear o subliminar alívio da morte alheia, com a exceção de João e Paulo, que foram para constatar se realmente poderia morrer pessoa tão viva, e também, para despedirem-se, pela última vez, daquela beleza irradiante que iluminara suas noites e colorira seus dias, respectivamente.
Ambos carregam um buquê de margaridas e violetas enquanto os demais levam crisântemos e desconhecimento. Estão lado a lado perdidos em agradáveis lembranças, sem dar qualquer fiapo de atenção às palavras do padre, que alheio ao ateísmo da morta, discursa sobre os benefícios do paraíso e os pecados da carne, sem saber que aquela que ali por perto, dorme sem sonhar, descobrira e habitara nos pecados da carne o paraíso.
João está prostrado ao lado de Paulo, ambos com os olhos fixos na amada. Expressam em suas faces uma morte compartilhada. De fato está a serem enterrados pedaços de ambos que sobreviverão nos dois apenas como reflexos do verdadeiro. Paulo começa a falar em tom baixo, como um sussurro, como se o pensamento se convertesse em oralidade sem a permissão do proprietário:
-  Embora esteja... parece tão...
- Viva – completou o João. Ainda consigo vê-la em seu particular caminhar,  como se...
- Tivessem correntes quebradas pelos pés frisando a sua liberdade.
- Isso! ... E seu olhar...mesmo que as pálpebras cobrem ele agora ainda consigo sentir!...o quão apassivador ele era...
- É como se guerras, brigas, desavenças, qualquer conflito conseguissem ser resolvidos por aquele olhar...
- louca...- disse João, acompanhado de um riso bobo e doce.
-louca... – repetiu o Paulo com o mesmo sorriso.
Paulo a amava sob a luz diurna, ao som clássico de Wagner, Mozart e Cia., num ritmo suave e doce. Os corpos atritavam não como quando se quer acender um fogo de forma primitiva, mas como um carinho, um caminhar desapressado e tranqüilo. Assistiam a jogos de futebol com uma rivalidade de guerra, mas ao fim dos embates, reconciliavam-se como crianças após uma briga boba. Discutiam política, ideologias e atitudes, em meio a cervejas, cigarros e afagos. Dava o horário de trabalhar do Paulo e ela partia.
João a amava sob o brilho do luar. Três, quatro ou cinco cigarros de maconha e estavam rindo como loucos de bobagens e absurdos, depois deitavam-se em paralelo e faziam individuais viagens espaciais, enquanto Pink Floyd ou Beatles recitava a trilha sonora. Depois se mandavam para os bares, praças e outros lugares, como crianças perdidas em um mundo adulto sem entender as regras. Ao fim do safári, entregavam-se à um sexo experimental, com pitadas de sadismos e do inusitado, até o sono arrebatar os corpos cansados de almas satisfeitas.
“Sempre gostei desse cheiro de terra molhada...vivi, morri, e daí? Jamais encarei a morte como o fim de alguma coisa. Enxergava-a em relação à vida, como enxergo a fome em relação à comida: tempero amplificando o sabor. Os lembretes da fome e da morte que me eram entregues, davam-me aviso de que deveria comer e viver... e amar! Sim! Amar!!Eu era o verbo amar encarnado. Antes de ser, eu era amor. Amor e liberdade. Um não existe, verdadeiramente, sem outro. Necessitam-se reciprocamente. Amor sem liberdade é sofrimento, liberdade sem amor é insignificância.
E assim amei... amei o João e o Paulo, o José, o Mário, o Carlos... amei torradas recheadas com manteiga natural, gelatinas com leite condensado, e outras picas, outras bocetas, peles, lábios, cabelos, olhos, lugares. Amei o óbvio e o implícito, ser puta e ser santa...amei até o ódio, afinal, este nada mais é que  um grito desesperado por amor. Amei as dores, vestígios de amores, amei a Dolores. Amei sois tropicais, dominicais, domingos bestiais, luas cheias, noites vazias. Amei amar. E agora? Agora não sei... sei que não morrerei...viverei nos amores... e nas dores.”
Seria um determinismo e uma omissão medíocre se eu vos dissesse que o João apenas a via às noites e o Paulo aos dias. Claro que não. Mas, em boa parte, diante das circunstâncias, era assim que acontecia. Pior ainda é se vos dissesse que ela apenas amava os dois ou que diariamente os via. As vezes, só queria deleitar-se com a solidão, desfrutando de sua melhor companhia, ela mesma. Nesses momentos, partia em cruzadas espirituais tentando conhecer-se ou então sonegava-se chorando em posição uterina. Em outras vomitava poemas, textos ou qualquer indigestão incômoda. Era uma louca e talvez por essa razão é que sabia viver.
O padre, ao fim do seu monólogo indiferente às singularidades, faz uma oração e encerra. Aos poucos, as pessoas jogam os buquês de crisântemos e vão embora, até que resta apenas o João e o Paulo. Um vento acalentador corre pelo dormitório dos mortos. Hesitam em jogar os buquês, como se nas flores restassem o ultimo elo vivo entre eles e ela. “Que bobagem”. Pensaram, depois de certo tempo. Flores a uma flor.  De adubo viverá. De amor também.
Dão as costas à amada. Olham-se nos olhos buscando cumplicidade. Apertam as mãos fortemente. Mais uma vez, um parecia ao outro, o ultimo elo vivo. João achou familiar o anel no dedo do Paulo. Este, achou familiar o broche na blusa do João. Após um aperto de mão parecido com uma “queda de braço”, seguem caminhos diferentes. O Coveiro finalmente aparece. Enquanto joga a terra de volta a seu lugar, apagando ela como uma bucha correndo pelo quadro riscado, pensa o coveiro sobre quando terá outro homem em seu lugar, enterrando o seu corpo também. Tão bem.

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