(Operário - Cândido Portinari)
O
chicote mergulhou no ar como uma cobra movendo-se pela terra, encontrou a negra
pele suja de Martin e deu-lhe um lascivo beijo, arrancando suspiros e pedaços
ensangüentados de carne. O corpo, mesmo cansado de tempos idos, devido à
surpreendente chicotada, despertou. Também não havia escapatória, um alarme
berrando às 5 da manhã, aviva a memória, junto à ópera dos galos, de que Nelson
precisava trabalhar se não a fome faria dele e de sua família, reféns.
Lavou
o rosto junto à água barrenta presa na bacia. Sentia-se como o liquido ali
despojado: estragado. Impossibilitado do que deveria ou poderia ser. Preso. Sem
possibilidades de escapatória. Gradativamente, tendo uma parte sua se esvaindo.
Uma hora não iria sobrar nada. Deveria ir, as conseqüências não são nada macias
quando se chega atardado.
Enquanto
Nelson seguia para o trabalho, pensava sobre o quanto se sentia saturado do que
fazia. Mas o que era muito pior era não poder se livrar disso tudo. Era um
escravo. Não se via de outra forma. Até trabalhava a mesma média diária. Tinha
lido sobre num livro de história da escola. Jamais esquecera, pois tinha
associado isso ao papai. Ele malmente o via. Quando o tinha, estava muito
desgastado e melancólico para estar com ele ao invés de um copo de bebida.
Agora, agia da mesma forma. Talvez tenha sido a única herança que herdara.
Martin
sentia o chicote dos séculos reiteradamente lhe tocar as costas, as cicatrizes,
a ferida viva exposta ao sol. Como era pesado aquele açoite. Sentia-o no sangue
que lhe fugia do corpo e coloria a plantação de algodão. Do alto do cavalo, o
negro capataz branda com fúria e ódio que não lhe pertence: “mais rápido seus
negros malditos, mais rápido”. Com a mesma fúria e ódio alheio ruge o
supervisor atrás de sua prancheta aos operários: “não fiquem de moleza! sem
meta, sem emprego”. Nelson bate mais forte o martelo, assim como o sol
enjaulado no caldeirão sopra larva em seu corpo suado.
O
senhorzinho, herdeiro das terras de gerações, diariamente fazia seu fervoroso
discurso bíblico a Martin e seus “iguais”. “Vocês, negros, são animais
desnivelados e desalmados. A única coisa que receberam de Deus foi um crânio
chato e a docilidade de serem dominados. Assim como seus ancestrais, nasceram
pra servir”.
O
patrão de Nelson, dono de fábrica há épocas em sua família, defende com garra
titânica, em todos os nobres espaços que freqüenta, “que há muito não há mais
antinomias. As misérias, se existem, são por culpa de quem é preguiçoso de mais
para eliminá-las”.
O
corpo escravo do cansaço rende-se à cama de pregos. A cratera do teto emoldura
a noite, expondo um quadro negro e iluminado. Os olhos acostumados ao tristonho
choro experimentam doces lágrimas. A esperança de dias melhores, invade-lhes a
alma.
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