domingo, 2 de agosto de 2015

Por que minha ampulheta não emperrou?

(Autoria Desconhecida)

Não queria ter crescido. Quer dizer, ter crescido, eu quis e quero ainda, pois é muito difícil achar suportes para mudar a temperatura da água em dias de inverno, quando a roupa já se foi. O que não é querido é o tempo ter me consumido e continuar a me consumir. Daquele rosto liso e inocente, há agora uma barba daquelas comunistas, cheia de intenções e tristezas, não tão passageiras.
Quando acordo em manhãs d’águas sinto um cheiro misturar-se ao de terra molhada, um odor forte e marcante. O perfume de minha infância, carregado de todas as nostalgias que profundamente me fizeram. Isso me faz lembrar o tempo que minha maior preocupação era chegar em casa a tempo de assistir o finzinho dos desenhos matinais.
Animações com a maldade e ingenuidade bem definidas, diferente da realidade que tive que aprender a viver, onde esses dois extremos se confundem de tal forma que a percepção fica a par dos cegos. Os perigos são reais, a malícia é camuflada e nossos heróis estão quase todos condenados a pena de vida, e os que não, estão se drogando pelas esquinas buscando estar em algum desenho. E essas decepções me deformaram em um desconfiado, levando-me também uma significativa fatia de boa-fé.
E das verdades que sempre proferia, tive que aprender a ocultar, nem sempre elas consolavam, deveriam, mas não. Lembro-me das revelações que fiz. Nada escapa aos olhos de uma criança atenta. Foram traições colocadas em “lençóis limpos”, atitudes e falas maldosas escancaradas com a maior pureza, fora as tantas outras realidades reprimidas com um “não conte isso pra ninguém”. As pessoas preferem a mentira. Masoquismo sentimental. As doses diárias de dor são mais aceitas do que verdades quebrando correntes mentais. E assim, aprendi a omitir, fingir, mentir e sorrir, forçosamente, sorrir.
Uma das minhas maiores saudades é de como eu sentia o amor ou ele a mim.  Não havia vergonha em amar e não ser recíproco, se sim, tanto melhor, mas o amar em si já confortava bastante. E declarar-se não era nenhuma ousadia, muito ao inverso, a palavra amor em meus lábios era moradia. Mas aos poucos a noção de posse foi se apropriando desse sentimento e a vivência do amor passou a ser trancafiada, e ai o amar tornou-se uma inquisição geográfica e descritiva, “onde está(va)?o que está(va) fazendo?". Claro, que até mesmo na infância o amor não era tão livre assim, mas a gaiola aberta, já representava muita coisa.
Da minha farta imaginação, restou-me uma gota que de vez em quando a uso, mais por saudade do que por necessidade. Tinha uma força mental brutal, dava vida a seres inanimados, construía realidades, fazia perguntas desconcertantes, e até criava pessoas, como o meu amigo imaginário. Habitava um Deus em mim.  Mas, foram, parceladamente esvaziando a minha imaginação. O último suspiro consegui salvar. Algumas pessoas não conseguem.
Alguns pensam, tentando se consolar, que a imaginação não condiz com a maturidade. Engano. Não é compatível com a órbita carcerária que é imposta. E assim, gradativamente, como fizeram com nossos pais, fizeram conosco, vão nos moldando: pela televisão, pelas escolas assassinas de mentes, propagandas de ilusão, nas ruas da insegurança, nas praças da vaidade e bares do vazio, até estarmos todos parecidos, jogados no sofá da sala, assistindo um miserável programa dominical, com nossos filhos ao lado, sendo também destruídos.
Mas de tudo isso, o que afiadamente assola a minha alma, é a noção de tempo que se metamorfoseou.  O tempo passava por mim, tão rápido quanto uma lagarta. Em um dia cabia tanto: risadas sinceras; indagações solucionadas, as que não eram se esquecia; a imensidão das coisas, uma queda, e mais outra, repetidamente até o medo ficar íntimo. Enfim, cabia minha semana e uma boa noite de sono. Hoje ao acordar, já me vejo ao pé da cama pra dormir. O dia me escorre aos dedos e eu não consigo segurar um segundo.
Também pudera. Na minha infância o tempo era convidado, um hóspede querido, como eu bem o aproveitava ele fazia questão de demorar ali, hoje deveras eu o pressiono, ele gozadamente me dá as costas e vai a sorrir. De tanto o cobrar, quando estamos a nos divertir, ao invés de alongar o momento, só pensa em fugir. Com o tempo correndo, fico a pensar na morte cada vez mais perto de mim.  E por correr contra o tempo, de vingança, mais cedo ou mais tarde, ele irá me sucumbir.

Nenhum comentário:

Postar um comentário