domingo, 20 de dezembro de 2015

Anjo Mortal

(Pai e Filho em Skagen - Michael Ancher)

As lágrimas caem dos céus, deixando-se levarem pela janela, paralelas às minhas. Tudo ao meu redor é nostálgico. Vestígios de lembranças. Corro os olhos minuciosamente pela casa. Os momentos vividos me inundam, afogando os mais breves pensamentos, até transbordarem-se pelos meus olhos de novo.
A recordação de como sua breve ausência doía, impõe-se. A frustração acampava o dia quando o seu tranquilizante riso não nos cumprimentava. Sua dose abundante de alegria imobilizava qualquer elefante de tristeza. Como nos tornamos dependentes de quem é alegre.
Uma tosse escapa da minha boca e anuncia a chegada de uma virose. A lembrança de seus ensinamentos de curandeiro é imediata. Aprendi, dentre os muitos remédios,o para virose: mel, alho e limão. A extrair da natureza a saúde que essa oferece. Estudando-se a fundo, poderia a farmacologia supor a insuficiência ou ineficácia de alguns remédios, mas o elemento principal é invisível às lentes da ciência. Cuidado. Esse tentáculo do amor é a substância mor de qualquer remédio, tratamento ou cura. Quando o amor nos quer bem, nós nos queremos bem também.
Sinto-me levemente escorregar, e ao olhar para o chão de cera amarela, que quando encerado brilha mais que mina de ouro, resgato a lembrança de quando eramos colocado sobre os seus pés e dançávamos valsas, forrós e boleros na elegância de um ballet russo. A raça humana foi confeccionada sem a dádiva das asas e sofremos todos a frustração decorrente disso, Ícaro que o diga. Contudo, aprendi bailando com meu pai, que com ossos de imaginação e penas de felicidade, voa-se livre como um gavião selvagem. Discordem quantos ornitólogos quiserem, mas só voa quem está feliz. Como os pássaros. Pena pelas tristes galinhas e gratidão pelas baratas infelizes.
Dirijo-me ao quintal e sento numa cadeira para fumar um cigarro. O camelo estacionado na parede cospe a lembrança de quando ele regulou em exagero o freio dianteiro da bicicleta e ao testá-lo fui arremessado de joelhos ao chão e por pouco não fui pisado por essa.  Meu pai que estava a me olhar correu desesperado ao meu encontro e sentiu-se tristemente culpado. Ficou a lição. Por mais que tenhamos a boa intenção de ajudar o outro, nem sempre seremos capazes de fazê-lo ou de estarmos livres do insucesso, das consequências indesejadas ou da incompreensão.
Avisto, quase que escondida, a churrasqueira enferrujada e aposentada de sua utilidade e rememoro deliciosos domingos. Ela também deve sentir muita a falta dele. Presenciou inúmeras vezes, a pequenina chama do fósforo  nascer faminta e com rapidez correr para  abocanhar  a flor de pão molhada com álcool e prostrada num copo descartável colocado por meu pai.  E num processo de crescimento, muito mais ligeiro que o humano, tornar-se adulta e espaçosa para enfim, assar a carne a ser saboreada na tarde do domingo. Tarde, porque como todos nós sabemos almoçar cedo aos domingos pode causar morte instantânea.
Após a falta foi que aprendi o significado destes momentos e outros, em que meu pai se alegrava em construir e os quais tinha plena consciência do seu significado. A felicidade habita na simplicidade de tudo o que constitui a vida. É clichê já desbotado, mas é sincero. E por supormos saber é que o óbvio ululante caminha mudo e despercebido. É necessário desprendimento e atenciosa prática para que consigamos extrair a seiva da felicidade que bombeia nas coisas simples.
Nesses momentos, sentia uma alegria constante e sem razões claras percorrer o ambiente. Não estava na fartura de comida, na ausência de obrigações, na bebida distribuída nos copos nem na maresia dominical.  Estava em estarmos juntos, no cozinhar carinhoso para quem ama, nas músicas gostosas que compuseram as trilhas sonoras dessas vivências e que se constituem em instrumento de recordação. Estava e está nos gestos de gentileza e no sentimento prazeroso de estar rodeado de amores e apreciar a existência de suas presenças em nossas vidas.  
A descoberta é uma loteria, pode ser algo que traga tristeza, alegria ou ambos. Quando ouvi o sussurro da palavra maligno e a reação de meu pai, mesmo com a pouca vivência de uma criança, compreendi o significado. A morte anunciada traz consigo dor constante, mas também aprendizado. A convivência diária com a morte, mesmo que não a sua, ressignifica substancialmente como você encara a vida. Não viemos com prazo de validade e estamos sempre tentando camuflar a nossa fugacidade. Isto não é apologia à morbidez, é viver com sobriedade. Tornei-me a contradição de um fruto de casca ainda verde e interior já amadurecido.
Compreendi que não temos controle sobre a nossa morte. Da vida, temos em reduzido. As circunstâncias estão lançadas. Temos a faculdade de interpretá-las, posicionar-nos e agir. A condução do barco da vida nas águas do destino será de acordo à forma com que você usa sua faculdade. Há momentos tempestuosos e desoladores. Outros de ensolarada tranquilidade e paz. Saibamos navegar cada momento. A vida toca por reprodução aleatória e ininterrupta, delicie-se.

   Os aprendizados foram muitos, assim como as dificuldades em continuar a relembrá-los. Ponho bebida em um copo e acendo outro cigarro. As lágrimas continuam a escorrer como se tivessem a recompensar as que eu impedi de nascerem. Tento sair do museu onde as lembranças estão penduradas, mas me é muito difícil, nunca consegui equilibrar os sentimentos antagônicos que a saudade evoca. Seleciono algumas canções (“Ê Meu Pai”, “Retrovisor”, “Marvin”, “Vento no Litoral”, “Gostava Tanto de Você”, "Naquela Mesa"...) e coloco para ouvir. Enquanto a saudade rasga minha alma como uma navalha a escorrer pela pele, tento manter tão somente o sentimento de gratidão de ter amado e ter sido amado por um anjo mortal, que, muito além de um poderoso herói que usa a cueca sobre as calças, cumpriu a difícil missão de ser um exemplo de amor.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Última Conversa

(Auto Retrato Com a Morte Tocando Violino - Arnold Böcklin)

A noite estava amena. Charles, deitado na cama de seu quarto, observava a escuridão dos céus pela incompleta abertura da janela. Um vento calmo, porém marcante, escancarou as janelas, e abraçou Charles.  Um frio cadavérico lhe excitou os poros. Alguém entrou pela porta e sentou-se na poltrona ao lado da cama:
- Boa noite Charles.
- Boa noite.  Já esperava sua visita.
- Ora essa, não sabia que eu era tão previsível.
- Posso fumar um cigarro não é mesmo? - enquanto falava, inclinou-se à escrivaninha para apanhar um cigarro. - afinal de contas, que diferença faz mais?
- Quem sou eu pra ti dizeres algo?
Rolou a engrenagem do isqueiro e o fogo fez o resto. Deu uma leve tragada, saboreando, pausadamente, cada momento. A fumaça ao sair, desencadeou uma crise de tosses, que finalizou com um canal de sangue escorrendo pela boca, como uma macabra cachoeira.
- Como deve ser do lado de lá? – Perguntou Charles, limpando o sangue, com o lençol da cama, e dando outra desapressada tragada.
- Nunca morri pra saber. Charles quis dar uma gostosa risada, daquelas bem barulhentas e sinceras, mas o máximo que conseguiu foi inclinar o canto direito da boca.
- Tanto faz, a ideia de nenhum dos dois nunca me agradou muito.
- Essas coisas jamais lhe preocuparam Charles. Pessoas que se preocupam com tais coisas, não vivem como você, ou melhor, não vivem.  Charles ficou em silêncio. Talvez pensando no passado, talvez pensando se haveria tempo para arrependimentos, ou apenas tentava respirar. Outra seqüência de tosses esmurrou seus pulmões, quebrando o silêncio que reinava.
- Me dê mais alguns minutos de lembranças, é tudo que me sobra no fim...
- Não posso te permitir esse alívio. Você já escapou muitas vezes de mim. Mas realmente gostei de você Charles. Você é um cara legal. Te darei mais 5 segundos.
O ar foi ficando cada vez mais raro nos pulmões de Charles, assim como a luz em seus olhos. De todas as aventuras e loucuras que vivera, nenhuma ficou como ultima lembrança. Essa foi sim, uma de sua infância. Devia ter por volta de uns 10 anos. Corria na garupa da moto com seu pai. A brisa forte causada pela velocidade lhe refrescava do verão, e Charles com seus curtos braços tentando fazer com que eles se encontrassem no umbigo de seu pai, sem obter êxito. Mas não importava, era mais por capricho que ele queria, pois ele se sentia seguro. Realmente protegido, e feliz. É nesses momentos sem justificativas e razões que a felicidade invade. Tão breve como o alívio da sombra, do remédio ou da morte.

sábado, 24 de outubro de 2015

Mendigos de Amor

(O Mendigo - Vanessa Rosa)

Se julgassem a humanidade pelos pêlos gélidos e olhos famintos de um mendigo, pelos meus,  a condenação seria certa. Sete a zero no tribunal do júri.  As pessoas vão e voltam. Direita, esquerda. Tão apressadas. Escravas de um ritmo alheio. Dominadas por um tempo artificial. Não me enxergam. Passam por mim,  inspiram o odor, fingem ser lixo urbano e seguem adiante.  Hey!!! Estou aqui!  Sou esse espectro fedorento e encardido. Esse imundo ponto negro em meio a multidão.. Talvez se cantasse ou tocasse algum instrumento musical, eles me veriam. Ou quem sabe um cartaz apocalíptico: “ O Fim está próximo do fim”. Talvez. Este irá jogar alguma moeda:
- Obrigado! Tenha um dia agradável!
Sempre acerto. Sempre não, quase. Seria muita pretensão. Que horas são? Pela posição do sol e gravidade dos raios solares, diria que umas 07h20min. Vejamos então. Aquele rapaz sonolento ali. Não me dará qualquer dinheiro, mas me informará as horas. 07h25min. Quase. Está perto de passar o Sr. Moreira. Ele mora a umas duas quadras daqui. Todos os dias em que passa para ir ao trabalho, lança-me uma moeda. Nada mais. É um miserável. Fantasma para os filhos. Moedor de carne para a esposa. Placa torta indicando o caminho do dinheiro público. Um verme humano. Lá vem ele:
- ...
Não o agradeço, afinal, o dinheiro não lhe pertence. Aceito porque preciso. Creio que ele faça isso na ilusão de que tal gesto sopese o seu histórico de qualidades igual às minhas vestes e anule o peso de sua consciência.  Na esperança de que o travesseiro aguente diariamente o peso de sua cabeça e o deixe dormir. Mas o que é uma gota de sabão em meio a um mar de lama e fezes? Inútil.
Agora é hora de desfilar a Mariana. Nunca me deu um centavo. Não reclamo. Todos os dias, exceto nos dias em que recebe seu salário ou não apanha do marido, passa por mim, para, olha-me com pena, molha os olhos, faz uma careta e se entristece. Obedeço ao que me pede. Declino os cantos  da boca e enfeito o prato de miséria que eufemiza a sua vida. 
Lá vem uma criança acompanhada de seu pai. Como gosto das crianças. São tão humanas e sinceras antes da família e escola estragá-las. Sempre  me notam, e quando me notam, percebem que há erros nesse mundo  para além  daqueles dos deveres de matemática e português. Umas se entristecem verdadeiramente com a minha figura. Umas querem me abraçar, mas são impedidas. Há outras que querem compartilhar sua comida comigo ou me dar suas economias. Soutou as mãos  das de seu pai. Que olhar inconformado. Está sacando suas moedinhas do bolso:
-Não filha, não alimente o vício desse alcoolista.
- Mas papai, ele está precisando...
- Já lhe disse que não! Vamos, se não você irá se atrasar para a aula de religião.
-Lembre-se que o amor é a maior religião mocinha!
- Cala boca, seu bêbado imundo!
Vejam vocês. Que preconceito. Acham que todos os moradores de rua são alcoolistas. E eu aqui sóbrio desde a hora em que fui dormir. Cada qual com suas anestesias. Compreendem perfeitamente a necessidade de beberem para aliviar o estresse do dia a dia ou iludir os  problemas. Por que nós então não podemos também anestesiar a nossa realidade,  que é um bocadinho mais difícil? Quanto mais forte a dor, maior é a exigência de morfina...
- Vai trabalhar vagabundo!!!
Há esses também. Acreditam que não trabalhamos porque não queremos e que preferimos ficar deitados na rede da preguiça. Mas é claro! É muito fácil conseguir emprego personificado de esgoto e dificuldades, bem como é bastante agradável dormir refém do frio ou estar sempre em fuga da fome. Outros têm a crença religiosa de que é culpa exclusiva do Estado a situação dos habitantes dos becos, ruas, bancos, escadas de igreja e das demais mazelas sociais.  E dormem tranquilos, transferindo sua fatia de responsabilidade  para uma entidade meta-física ou qualquer outra pessoa. “É sempre mais fácil achar que a culpa é do outro, evita o aperto de mão de um possível aliado”.
As pessoas se expressam perante mim com sinceridade. Vomitam opiniões indigestas e pensamentos envenenados. Julgam-me um nada. Diante do nada, não há nada com que se preocupar. É como se as roupas dilaceradas pelo uso, a pele saudosa de banho e minha áurea de fedor aniquilassem a minha humanidade. Para além do meu rasgado modelito do verão, possuo um confortável colchão de papelão, um pano de derrotas invictas para os ventos gélidos, um sanduíche bem (do) passado, a tigela com a moeda do Sr. Moreira, um livro de poesias  achado no lixo do bancário que mora três ruas abaixo e esse pequeno cão, chamado  “Liso”, que é tão meu quanto eu sou dele, e que faz questão de me lembrar sempre sobre o que importa. No fim, só tenho amor a oferecer, mas nesse mundo de posses,  amor é coisa muito barata para se ter.
Outrora, uma confortável vida financeira me tinha. Contudo, esta me pregou uma peça, da qual não aplaudi no final. Mas isto é uma outra história e demasiadamente longa. Basta saberem que eu tinha muitas frações do deus do mercado e que os perdi. Diante disto, vocês poderiam  me questionar por que então não extirpo da face terrena, essa vida de perdas e dificuldades materiais?
Não sejamos pessimistas fatais. A vida é um grande espetáculo de beleza e prazer. Basta  que nos atentemos mais para as comédias e contemplações do que para as tragédias e dramas. É uma delícia apreciar o sol nascer ao fundo da livraria. Igualmente gostoso comer um pastel de nata e saborear o doce do pastel contrastar com o atendimento da vendedora. Tomar um café e fumar um cigarro, assistindo a elegância com que a fumaça de ambos dançam um tango argentino. Observar o amor do casal, que flutuando sob o banco da praça se consomem em beijos, transbordar ao chão, junto de onde os pombos fazem  as suas refeições. Agradecer à Dona Maria, pelos sorrisos que ela joga da janela, enquanto rega de alegria as suas plantas. Oh! Doce Maria! E mesmo nas madrugadas  em que os sopros do vento confundem-se com  abraços da morte, olhar para o alto e contemplar a majestosa lua dourada, descer humildemente dos céus.
Obrigado aos senhores e senhoras, ratos e baratas, pela atenção. Irei me dirigir agora para a única lanchonete que me permite entrar. A fome está a horas, talvez dias, torturando meu estômago, e esse sanduíche é minha reserva  para tempos difíceis. Como estou com saudades de um café! Prometo que caso dê para comprar um pão, trago um pedaço para vocês.  Minhas pernas sempre a me surpreender. Levantando-me mesmo com quantidades cada vez menores de energia. Como é brilhante os limites quebrados pelo corpo. Não é verdade? Até breve! Espero que esteja trabalhando a Bárbara. Gosto muito das músicas que ela põe para tocar no ambiente.

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

As Mulheres de Minha Vida - O Conto Fofo

(Death and Life - Gustav Klimt)

Minha primeira respirada no mundo foi difícil, logo chorei. Não poderia ser diferente, afinal, fui puxado do meu caloroso ventre materno e para completar, as primeiras mãos que me tocam, são estranhas a mim. Mas meu desespero não foi eterno, depois de certo tempo, que ainda era desconhecido para mim, senti mãos doces me envolverem, e mesmo com meus minúsculos olhos fechados, sabia que a dona das mãos me olhava, com aquele olhar que nada faz além de contemplar. Percebi naquele exato momento, que tais olhos me acompanhariam pelo resto de minha existência.
Na minha infância, por volta dos sete ou oito anos, uma outra mulher, ou melhor, uma menina, entrou na minha vida. Eu em minha ilustre sabedoria infantil, não sabia significados, principalmente do amor, a única coisa que tinha convicção é de que um sorriso brotava no jardim do meu rosto, toda vez que a via. Ela, com seus longos cabelos negros e seu jeitinho angelical, fazia meu interior transbordar de felicidade. Meus caros, não há na terra ou no universo, algo mais belo que o amor inocente. É um amor unilateral, que não espera reciprocidade, é negócio sem pagamento. Sentimento bobo, que não se constrói por força do sentimento de posse, muito pelo contrário, nasce da liberdade, da liberdade que só as crianças entendem.  
Não sei por quais motivos, mas, um novo amor só voltou a me procurar na juventude, em sua forma platônica. É, talvez, a forma mais brutal, diria de certa forma, até masoquista. Você se apaixona por uma pessoa, faz dela uma deusa, amando seus encantos e amando ainda mais seus defeitos. É pura perfeição aos olhos de quem ama. E a grande dor dos que amam de forma platônica é que por mais que pensem querer a reciprocidade do amor, na realidade, internamente clamam pela dor, rezam pela distância, e no sofrimento amam ainda mais. Portanto, o amor platônico nada mais é do que um autoflagelo sentimental.
Para se recuperar dessa tortuosa fatia da minha vida, entreguei-me ao Sansara. Não poderei dizer que encontrei alento, carinho ou coisa do tipo, talvez em doses homeopáticas. Para ser honesto, achei noites sem ninar, ilusões embaladas, mentiras engarrafadas e variadas transas vazias de profundo afeto. Não sei dizer se amei alguma ou algumas dessas mulheres. Apesar de não recordar mais seus nomes, creio eu ter amado todas, de certo modo. E quando digo todas, falo por não ser possível o amor nessa época, se não for levado em conta na sua completude. Amei assim: Marias, Joanas e Madalenas; loiras, castanhas, ruivas e morenas; magras, fofas, altas e pequenas; casadas cansadas, solteiras de compromissos, namoradas da vida e putas. Ou não amei nenhuma.
Dizem as más e as boas línguas também, que não existe essa coisa de sua metade. Ou tais línguas estão erradas e eu estou certo, ou o contrário, mas acontece que encontrei a minha, e foi lá na casa dos trinta anos. Quando a conheci, senti que poderia esquecer toda a minha vida de esbórnia e álcool e a liberdade a ela atrelada sem lamento nenhum. Nosso relacionamento iniciou-se em êxtase como todo começo. Aos poucos foi amadurecendo, enfrentando barreiras, evoluindo. Não posso afirmar que nosso amor foi igual aqueles de filmes Hollywoodianos ou daqueles cotidianos, apenas nos amávamos e isso bastava.
Tivemos filhos, fotos, férias, cadeiras de balanço. Na velhice de nós dois a minha querida e odiosa morte com ciúmes, buscou-a primeiro, e isso me arrasou profundamente. Nunca compreendi essa senhora dos destinos, assim como as outras. E nesse joguinho de querer-lá e repulsar–lá, eis que essa também faz parte de mim.   Aos meus 90 e poucos anos, lembro com lágrimas, de alegria e saudade, a minha vida, e as mulheres que dela fizeram parte. Ah! Não poderia me esquecer da última mulher a po(u)sar na janela da minha vida. Dona Raimunda. É uma senhora de alma doce. Às oito da manhã vem derrubar a porta do meu quarto, aos berros:
-Seu Antônio, acorda!! O belo sol lá fora lhe espera para dar bom dia. Já tomou os remédios matinais??? 

domingo, 2 de agosto de 2015

Por que minha ampulheta não emperrou?

(Autoria Desconhecida)

Não queria ter crescido. Quer dizer, ter crescido, eu quis e quero ainda, pois é muito difícil achar suportes para mudar a temperatura da água em dias de inverno, quando a roupa já se foi. O que não é querido é o tempo ter me consumido e continuar a me consumir. Daquele rosto liso e inocente, há agora uma barba daquelas comunistas, cheia de intenções e tristezas, não tão passageiras.
Quando acordo em manhãs d’águas sinto um cheiro misturar-se ao de terra molhada, um odor forte e marcante. O perfume de minha infância, carregado de todas as nostalgias que profundamente me fizeram. Isso me faz lembrar o tempo que minha maior preocupação era chegar em casa a tempo de assistir o finzinho dos desenhos matinais.
Animações com a maldade e ingenuidade bem definidas, diferente da realidade que tive que aprender a viver, onde esses dois extremos se confundem de tal forma que a percepção fica a par dos cegos. Os perigos são reais, a malícia é camuflada e nossos heróis estão quase todos condenados a pena de vida, e os que não, estão se drogando pelas esquinas buscando estar em algum desenho. E essas decepções me deformaram em um desconfiado, levando-me também uma significativa fatia de boa-fé.
E das verdades que sempre proferia, tive que aprender a ocultar, nem sempre elas consolavam, deveriam, mas não. Lembro-me das revelações que fiz. Nada escapa aos olhos de uma criança atenta. Foram traições colocadas em “lençóis limpos”, atitudes e falas maldosas escancaradas com a maior pureza, fora as tantas outras realidades reprimidas com um “não conte isso pra ninguém”. As pessoas preferem a mentira. Masoquismo sentimental. As doses diárias de dor são mais aceitas do que verdades quebrando correntes mentais. E assim, aprendi a omitir, fingir, mentir e sorrir, forçosamente, sorrir.
Uma das minhas maiores saudades é de como eu sentia o amor ou ele a mim.  Não havia vergonha em amar e não ser recíproco, se sim, tanto melhor, mas o amar em si já confortava bastante. E declarar-se não era nenhuma ousadia, muito ao inverso, a palavra amor em meus lábios era moradia. Mas aos poucos a noção de posse foi se apropriando desse sentimento e a vivência do amor passou a ser trancafiada, e ai o amar tornou-se uma inquisição geográfica e descritiva, “onde está(va)?o que está(va) fazendo?". Claro, que até mesmo na infância o amor não era tão livre assim, mas a gaiola aberta, já representava muita coisa.
Da minha farta imaginação, restou-me uma gota que de vez em quando a uso, mais por saudade do que por necessidade. Tinha uma força mental brutal, dava vida a seres inanimados, construía realidades, fazia perguntas desconcertantes, e até criava pessoas, como o meu amigo imaginário. Habitava um Deus em mim.  Mas, foram, parceladamente esvaziando a minha imaginação. O último suspiro consegui salvar. Algumas pessoas não conseguem.
Alguns pensam, tentando se consolar, que a imaginação não condiz com a maturidade. Engano. Não é compatível com a órbita carcerária que é imposta. E assim, gradativamente, como fizeram com nossos pais, fizeram conosco, vão nos moldando: pela televisão, pelas escolas assassinas de mentes, propagandas de ilusão, nas ruas da insegurança, nas praças da vaidade e bares do vazio, até estarmos todos parecidos, jogados no sofá da sala, assistindo um miserável programa dominical, com nossos filhos ao lado, sendo também destruídos.
Mas de tudo isso, o que afiadamente assola a minha alma, é a noção de tempo que se metamorfoseou.  O tempo passava por mim, tão rápido quanto uma lagarta. Em um dia cabia tanto: risadas sinceras; indagações solucionadas, as que não eram se esquecia; a imensidão das coisas, uma queda, e mais outra, repetidamente até o medo ficar íntimo. Enfim, cabia minha semana e uma boa noite de sono. Hoje ao acordar, já me vejo ao pé da cama pra dormir. O dia me escorre aos dedos e eu não consigo segurar um segundo.
Também pudera. Na minha infância o tempo era convidado, um hóspede querido, como eu bem o aproveitava ele fazia questão de demorar ali, hoje deveras eu o pressiono, ele gozadamente me dá as costas e vai a sorrir. De tanto o cobrar, quando estamos a nos divertir, ao invés de alongar o momento, só pensa em fugir. Com o tempo correndo, fico a pensar na morte cada vez mais perto de mim.  E por correr contra o tempo, de vingança, mais cedo ou mais tarde, ele irá me sucumbir.

terça-feira, 28 de julho de 2015

Museu de Grandes Novidades



(Operário - Cândido Portinari)

O chicote mergulhou no ar como uma cobra movendo-se pela terra, encontrou a negra pele suja de Martin e deu-lhe um lascivo beijo, arrancando suspiros e pedaços ensangüentados de carne. O corpo, mesmo cansado de tempos idos, devido à surpreendente chicotada, despertou. Também não havia escapatória, um alarme berrando às 5 da manhã, aviva a memória, junto à ópera dos galos, de que Nelson precisava trabalhar se não a fome faria dele e de sua família, reféns.
Lavou o rosto junto à água barrenta presa na bacia. Sentia-se como o liquido ali despojado: estragado. Impossibilitado do que deveria ou poderia ser. Preso. Sem possibilidades de escapatória. Gradativamente, tendo uma parte sua se esvaindo. Uma hora não iria sobrar nada. Deveria ir, as conseqüências não são nada macias quando se chega atardado.
Enquanto Nelson seguia para o trabalho, pensava sobre o quanto se sentia saturado do que fazia. Mas o que era muito pior era não poder se livrar disso tudo. Era um escravo. Não se via de outra forma. Até trabalhava a mesma média diária. Tinha lido sobre num livro de história da escola. Jamais esquecera, pois tinha associado isso ao papai. Ele malmente o via. Quando o tinha, estava muito desgastado e melancólico para estar com ele ao invés de um copo de bebida. Agora, agia da mesma forma. Talvez tenha sido a única herança que herdara.
Martin sentia o chicote dos séculos reiteradamente lhe tocar as costas, as cicatrizes, a ferida viva exposta ao sol. Como era pesado aquele açoite. Sentia-o no sangue que lhe fugia do corpo e coloria a plantação de algodão. Do alto do cavalo, o negro capataz branda com fúria e ódio que não lhe pertence: “mais rápido seus negros malditos, mais rápido”. Com a mesma fúria e ódio alheio ruge o supervisor atrás de sua prancheta aos operários: “não fiquem de moleza! sem meta, sem emprego”. Nelson bate mais forte o martelo, assim como o sol enjaulado no caldeirão sopra larva em seu corpo suado.
O senhorzinho, herdeiro das terras de gerações, diariamente fazia seu fervoroso discurso bíblico a Martin e seus “iguais”. “Vocês, negros, são animais desnivelados e desalmados. A única coisa que receberam de Deus foi um crânio chato e a docilidade de serem dominados. Assim como seus ancestrais, nasceram pra servir”.
O patrão de Nelson, dono de fábrica há épocas em sua família, defende com garra titânica, em todos os nobres espaços que freqüenta, “que há muito não há mais antinomias. As misérias, se existem, são por culpa de quem é preguiçoso de mais para eliminá-las”.
O corpo escravo do cansaço rende-se à cama de pregos. A cratera do teto emoldura a noite, expondo um quadro negro e iluminado. Os olhos acostumados ao tristonho choro experimentam doces lágrimas. A esperança de dias melhores, invade-lhes a alma.


segunda-feira, 27 de julho de 2015

Piece of Shit

(Homem Velho com a Cabeça em Suas Mãos - Van Gogh)

De olhos abertos e sentimentos rasgados, vou por ai arrastando a minha alma. Confundo a localização da minha sombra e corpo. Esqueci de tomar a minha dose diária de ilusão. Pode ser que tenha tomado e não esteja mais fazendo efeito. A realidade crua talvez seja saborosa para quem gosta de sushi. Vou me lembrando das canções que me avisam de que viver é que é foda, desnecessário e perigoso. Ironicamente, as suas irmãs me dizem que viver é o maior delírio, alucinação e gozo. Decidam-se.
Passeio pela calçada com a sensação de que caminho pela corda bamba. Distribuo cortesia e simpatia. Será que não enxergam as linhas segurando o sorriso? Faço o esboço de um choro, mas as minhas lágrimas não têm coragem de pintarem a face e secarem ao sol furioso. Engano meu, devem ser espertas de mais para morrerem em vão.
Assisto emocionado à fabulosa tragédia grega que é a vida. Sempre gostei mais de filmes com doses cavalares de humor. Uma ambulância transporta um defunto do descaso. O som da sirene me avisa da possível diminuição populacional. Uma vida desconhecida que pode se esvair. Uma vida. Mas, as pessoas muito preocupadas estão fudendo para isso. Questiono-me se pôr um filho nesse mundo é um ato de amor ou egoísmo. Uma criança passa por mim correndo livre e com um sorriso sincero. A alegria temporária que me invade, soluciona a questão.
Coloridos escravos modernos seguem para as plantações de concreto. O mau passado entalou na garganta. Exageraram no sangue. Maldito momento em que li o primeiro livro de poesia. Infantil. Maldito Einstein. Oh!Doce ilusão! Pergunto-me quando ficarei louco. Ou será que a insanidade já tomou conta? Não... eles é que estão loucos. Estabelecendo meus parâmetros, jamais enlouquecerei.
Vejo pessoas cuspirem ódio umas às outras. A culpa é sempre e somente do outro. Todos armados com escudos mentais e espadas ignorantes. Os que mais precisam de amor, são os que menos têm. Óbvio ululante. Ninguém parece ouvir. Onde falta amor, ganha espaço a dor. Onde há dor, o ódio reina. Galos da mesma classe brigando entre si. Das feridas escorrem lucros. Não são dos galos. Estes, treinados para digladiarem até a morte, às vezes arranham os donos. Uma bala na testa ou prisão. Os outros galos, estupidamente, sorriem.
Continuo a caminhar, pesaroso se devo continuar ou retornar para debaixo dos lençóis. Como é apassivador o cheiro de amaciante. Ouço discutirem o banal com seriedade, o sério com banalidade. Correm a vida inteira atrás do ouro de tolo. Inútil. Joguei o meu aos ratos.  Na busca estúpida, perdem o sabor da comida, o cheiro da flor. Não riem do fácil. Sem abraços e nem braços. A chuva é inimiga. O sol incômodo.
Tento juntar os cacos da minha alma, montar o quebra-cabeça de meus pensamentos. Tudo tem sentido. Nada faz sentido. Peguei a direção errada em algum momento. Por que deveria seguir as placas? Sinto a morte caminhar paralela a mim, pôr a mão em meus ombros e perguntar: tudo bem? Pressinto minha morte nos carros apressados, nas armas violentadas, no meu coração rebelde, nas coisas estúpidas. Tenho medo. Sim!!Medo!!Quem lhe disse que eu quero morrer?
Se ao ler estas linhas esteja pensando em pegar o revólver na gaveta, ou onde quer que esteja, ou em buscar a navalha no banheiro, lembre-se de dar o tiro na nuca, no primeiro caso, e cortar o pulso horizontalmente, no segundo caso.  Se continua a ler, lembre-se que as folhas secas caem das árvores para que o vento leve o que morreu. Encontre na lama o seu banho de sais aromatizantes. Talvez na primavera nasçam flores coloridas de vida e cheirosas de sabor. Talvez brote u(n)m(s) amor(es). Talvez um conto ou uma nova música antiga nos salve. Talvez. 

Alma Cancerosa

(Saint-Paul Asylum, Saint-Rémy - Van Gogh)

Uma tira de sol invadiu a janela e beijou-lhe a face. O incômodo o despertou. Mas apesar de acordar, Raul queria insistir em dormir, pois os sonhos eram muito mais queridos que a realidade. Tentou com forças titânicas fazer com que o espírito convencesse seu corpo disso, segurando-o preguiçosamente. Não adiantou, o organismo já alienado pela rotina o expulsou da cama.
Em pé, sentiu a cabeça, que a pouco doía superficialmente, agora parecia estar recebendo marteladas vazias de qualquer compaixão, e as tripas que estavam a dançar loucamente um tango argentino, confessavam vestígios da noite anterior. Tentou comer alguma algo, mas o corpo ainda embriagado recusou. Enquanto tentava se equilibrar, avistou o escravocrata do tempo, que pendia torto na parede acusando o seu atraso para o trabalho. Nunca gostou do que fazia. Não desistia, porque assim como as vacas precisam de seu capim, ele precisava do seu.  
Enquanto esperava o micro-ônibus lotar, o motorista estacionou o veículo numa sombra projetada por uma grande árvore. Um vento fresco penetrou as janelas e uma lembrança infantil lhe ocorreu. Tinha por volta de uns 10 ou 12 anos e descansava, com os amigos, de uma partida de futebol, embaixo de um pé de algaroba, refrescando-se com gelados feitos por uma velha porca, que provavelmente já devia ter virado banquete de vermes. O vento que refrescava os corpos suados parecia-lhe ser o mesmo que bagunçava seus cabelos no veículo.  “Onde estariam aqueles filhos da puta? vivos? felizes? Eu estou?”.
Outras lembranças começaram a emergir, e de súbito, uma angústia lhe abraça a alma. As coisas ao seu redor, ligeiro e gradativamente vão perdendo seu sentido.  Um sentimento fatalista assopra pra longe a racional segurança. Pelo vidro da janela Raul avista um inseto verde esmagado na calçada. “A esperança está morta. Mataram ou ela se matou?”. Enquanto pensa, a efusão de pensamentos fatalistas continua a lhe entupir. Quando foi que perdera o controle de sua vida? Ou melhor, ele já existiu alguma vez? O seu redor lhe parece estranho e o fere dolorosamente
Do assento, consegue sentir o gélido abandono do mendigo, de olhar perneta, que tenta sustentar a pedinte tigela assim como a sua vontade de viver. E cada transeunte que passa e não lança uma moeda, arranca-lhe porções de ar. As pessoas, sejam as que caminham apressadas para o abatedouro, as que se espremem nos ônibus ou as que se matam gradativamente em suas misérias particulares, apresentam-lhe faces sinceras.  Palhaços descontentes. Até o pobre animal, esbelto de fome, que sem êxito procura um olhar atento para acalmar a fome e a solidão, lhe devora.  
O motorista liga o motor e começa a mover-se pela estrada, tão iludido de sua liberdade quanto o veículo. Como queria poder fazer algo o Raul, mas ele, meus caros, sabe de sua impotência. E ao olhar o terço, com Cristo crucificado, pendurado, sente-se compreendido. Isso lhe levou a lembrar de Deus, de que este, definitivamente, não passa de invenção.
Demorara muito para assassinar mentalmente o Senhor de que lhe fala o livro santo. O medo de estar errado e ser inquisitorialmente castigado lhe atormentava. Depois, com o escorrer do tempo, floresceu o entendimento de que não fazia diferença acreditar ou não no divino. Em verdade, estamos apenas jogados pelo mundo, tentando de alguma forma não sermos engolidos por nossas desgraças.  Sua convicção o assustou como outrora, novamente o desejo de ser um cara de fé enferrujada passou pela cabeça, porém, sabe que não é mais possível.
As lágrimas parecem querer saltar os olhos. Mas ele sabe que elas não irão. Tão tímidas e anti-sociais suas lágrimas, sempre buscando se libertarem no trono do banheiro, no abafo do lençol, em ruas desertas de luz e pessoas. Ninguém as veem, ninguém às sentem. Raul passa o avesso da mão nos olhos, tentando enxugar as lágrimas que não caíram.
Na volta do trabalho, enquanto as pessoas conversam sobre seus ópios, Raul tenta construir uma compreensão: a de que cada pessoa tem uma morte engarrafa dentro de si. Na sua maioria, a morte repousa em um sono profundo, arranhando raramente com a ponta da unha a garrafa e só se libertando quando chega a hora de o indivíduo partir. Mas no ínfimo resto ela não se comporta assim. Está constantemente acordada, valsando e batucando nas paredes de sua prisão, mostrando-lhes um mundo descortinado.  Alguns buscam alívio dessa tormenta mergulhando de alma e alma nos remédios, nas drogas, nas anestesias sociais. Outros vomitam o incômodo nas artes, nas pessoas, na vida. Ainda há os que não agüentam a tortura mental e estouram os miolos.
Ao chegar em casa, Raul desmonta no sofá, folga a gravata como se estivesse quebrando correntes seculares de escravidão. Logo após, retira o par de sapatos e as meias, e por um breve instante, sente toda a pressão mundana dar trégua. Sai a andar de pés nus pela casa, contatando com o frio calmo do chão, como adorava fazer quando pequeno. O resgate desta lembrança infantil rememora em cascata outras lembranças de menino e a nostalgia lhe entorpece a alma de saudade. E tristeza, tristeza pela ausência de tempos idos, que por mais que se tente repetir, não se consegue.
Enquanto caminha perdido em seu próprio lar, Raul se depara com o espelho da sala e se da conta de que sua barba atingiu níveis esquerdistas. Como não se sabe mais de que lado estão certos barbudos, Raul resolve cortar os cabelos faciais. Despe-se na porta do banheiro e começa a preparar os instrumentos necessários para se cortar uma barba à moda antiga, como fazia o seu pai, e antes deste, seu avô.
Ao por a lâmina no barbeador, Raul acaba, acidentalmente, cortando-se, o sangue vivo a escorrer pela mão lhe traz uma velha idéia que jamais conseguiu concretizar. Posiciona a navalha ao lado do pescoço, ao passo em que se confronta mentalmente sobre qual será sua próxima ação. A luz da lâmpada incide na periferia do metal frisando a capacidade de perfuração. Nunca soube responder se é um ato de coragem ou covardia. Conclui que ainda há pelo que se viver. Pudins caramelizados. Canções compreensivas. Manhãs mornas. Paixões...
Raul abre o registro e a chuva particular desliza pelo corpo como uma enxurrada levando tudo que está pela superfície. Como queria que essas águas alagassem sua alma e a lavasse. Mas, com pesares, ela apenas limpa o corpo. Isso já é de grande alívio. Enquanto se enxuga, pensa em que deveria escrever sobre essas coisas que tanto o incomoda.
Depois disso, dirige-se até a sala, enrolado na toalha, põe um disco de Belchior na vitrola, e enquanto a agulha excita o vinil ao grito, Raul enche um copo com whisky, tragando-o em um golada, como remédio ás dores, para enchê-lo novamente. Despoja-se no sofá e isola os ouvidos no som. “Me dizem que estas músicas me levarão a morte, mas não entendem, elas zelam minha sobrevivência. Livram-me da loucura e do suicídio. São facas afiadas abrindo, com precisão cirúrgica, a ferida da minha alma, retirando o tumor que a habita. não compreendem”. Porém, Raul sabe que se criou metástase há muito, e o câncer sempre volta. Não há solução se não a morte.
Os amigos lhe ligam para que ele apareça. Após muita relutância, Raul se veste e vai ao bar. Estão todos a tecerem críticas sobre a humanidade, as artes, a vida alheia. Estão a rir de piadas desgraçadas e das desgraças. A mente de Raul não está interessada na conversa. Está lá com o mendigo de corpo e barriga ao relento e procura entender por que nos alimentamos de miséria. Está pensando em dona Maria, que enfrenta o futuro a cada minuto.  Apesar do rodeio de pessoas, sente uma solidão crescente lhe assolar.
Mesmo diante de protestos e clamores, Raul se despede e vai embora, com uma saudade pródiga do lar. Na solidão das ruas, com uma garrafa na direita e um cigarro na esquerda, o canto íntimo lhe escapa a boca, tão natural quanto seus batimentos cardíacos. Suas lagrimas também não se contêm. O cantar, indiferente aos gritos das casas e ao sexo dos felinos, espalha-se na escuridão, tão vivo quanto uma flor arrancada, uma paixão de fraldas.

Deita na cama, como um gladiador beijando as areias do coliseu. O álcool sempre foi o seu melhor sonífero contra a insônia. Enquanto as pálpebras vão de encontro, Raul pensa. Pensa no arrependimento de que talvez tivesse uma mulher que lhe entenda no bar, mas ele fugiu. Pensa em escrever sobre essas coisas que tanto o incomoda. Dorme tentando convencer-se de que ainda há esperança, de que amanhã  será um dia melhor. Talvez. Talvez Raul.

A Intimidade é Algo Pessoal

(Retrato de Taryn Szpilmann - Pintura em tinta óleo - por Judite Pimentel)

Dois corpos jogados na cama. Corpos semi-mortos rodeados de ar pouco e gasto. Extrapolaram os limites do proibido, fizeram do kamasutra um livro inocente. Ele pegou um cigarro para si e arriscou dar um a ela, que, querendo ou não, aceitou. Ficaram por uns instantes olhando o acaso, imersos em nostálgicos pensamentos, tentando de alguma forma individualizar a unificação corporal do momento anterior.
Mas o prazer é finito, pois caso contrário não poderia responder por esse nome e assim, foram aos poucos voltando à realidade e a sentir suas respectivas pernas. Enquanto a adrenalina se reprimia. Matheus começava a reparar os móveis a sua volta e numa dessas pinceladas reparou um amontoado de folhas sobre a escrivaninha, que pareciam jogadas, mas não de um modo qualquer, de um jeito suave e desajeitado.
Para “quebrar o gelo”, que por incrível que pareça, havia se formado, ele resolveu perguntar do que se tratava aqueles papéis com uma imagem tão convidativa. Ela friamente respondeu “são escritos meu”. Matheus, tentando estabelecer uma comunicação, sugeriu que lesse algum para ele. E ela de forma desprezível disse que “aí já é intimidade de mais”.

sábado, 25 de julho de 2015

A Morte de uma Puta Mulher (ou O Anel e o Broche)



(O Nascimento de Vênus - Sandro Botticelli)


Os céus choram serenamente. Os pingos d’água beijam a face terrena com a mesma cadência que as lágrimas escorrem pelo chão da pele quando a dor da saudade é grande e elas se multiplicam sem qualquer esforço humano, como se soubessem a hora de entrar em cena. O sol encobre-se de nuvens negras não querendo visualizar a morte de outra estrela, assim como nos escondíamos por detrás dos lençóis para se esconder de algo ou por medo de enxergar a realidade. E os pássaros enfileiram-se pelos galhos das árvores que de tão imponentes, contrastam-se com o ambiente, os humores e moradores. Estão a cantar, em sintonia orquestral, um fado português de tamanha melancolia, que caso se personificasse, o suicídio seria imediato.
Todos estão presentes para consagrar a finitude da vida e saborear o subliminar alívio da morte alheia, com a exceção de João e Paulo, que foram para constatar se realmente poderia morrer pessoa tão viva, e também, para despedirem-se, pela última vez, daquela beleza irradiante que iluminara suas noites e colorira seus dias, respectivamente.
Ambos carregam um buquê de margaridas e violetas enquanto os demais levam crisântemos e desconhecimento. Estão lado a lado perdidos em agradáveis lembranças, sem dar qualquer fiapo de atenção às palavras do padre, que alheio ao ateísmo da morta, discursa sobre os benefícios do paraíso e os pecados da carne, sem saber que aquela que ali por perto, dorme sem sonhar, descobrira e habitara nos pecados da carne o paraíso.
João está prostrado ao lado de Paulo, ambos com os olhos fixos na amada. Expressam em suas faces uma morte compartilhada. De fato está a serem enterrados pedaços de ambos que sobreviverão nos dois apenas como reflexos do verdadeiro. Paulo começa a falar em tom baixo, como um sussurro, como se o pensamento se convertesse em oralidade sem a permissão do proprietário:
-  Embora esteja... parece tão...
- Viva – completou o João. Ainda consigo vê-la em seu particular caminhar,  como se...
- Tivessem correntes quebradas pelos pés frisando a sua liberdade.
- Isso! ... E seu olhar...mesmo que as pálpebras cobrem ele agora ainda consigo sentir!...o quão apassivador ele era...
- É como se guerras, brigas, desavenças, qualquer conflito conseguissem ser resolvidos por aquele olhar...
- louca...- disse João, acompanhado de um riso bobo e doce.
-louca... – repetiu o Paulo com o mesmo sorriso.
Paulo a amava sob a luz diurna, ao som clássico de Wagner, Mozart e Cia., num ritmo suave e doce. Os corpos atritavam não como quando se quer acender um fogo de forma primitiva, mas como um carinho, um caminhar desapressado e tranqüilo. Assistiam a jogos de futebol com uma rivalidade de guerra, mas ao fim dos embates, reconciliavam-se como crianças após uma briga boba. Discutiam política, ideologias e atitudes, em meio a cervejas, cigarros e afagos. Dava o horário de trabalhar do Paulo e ela partia.
João a amava sob o brilho do luar. Três, quatro ou cinco cigarros de maconha e estavam rindo como loucos de bobagens e absurdos, depois deitavam-se em paralelo e faziam individuais viagens espaciais, enquanto Pink Floyd ou Beatles recitava a trilha sonora. Depois se mandavam para os bares, praças e outros lugares, como crianças perdidas em um mundo adulto sem entender as regras. Ao fim do safári, entregavam-se à um sexo experimental, com pitadas de sadismos e do inusitado, até o sono arrebatar os corpos cansados de almas satisfeitas.
“Sempre gostei desse cheiro de terra molhada...vivi, morri, e daí? Jamais encarei a morte como o fim de alguma coisa. Enxergava-a em relação à vida, como enxergo a fome em relação à comida: tempero amplificando o sabor. Os lembretes da fome e da morte que me eram entregues, davam-me aviso de que deveria comer e viver... e amar! Sim! Amar!!Eu era o verbo amar encarnado. Antes de ser, eu era amor. Amor e liberdade. Um não existe, verdadeiramente, sem outro. Necessitam-se reciprocamente. Amor sem liberdade é sofrimento, liberdade sem amor é insignificância.
E assim amei... amei o João e o Paulo, o José, o Mário, o Carlos... amei torradas recheadas com manteiga natural, gelatinas com leite condensado, e outras picas, outras bocetas, peles, lábios, cabelos, olhos, lugares. Amei o óbvio e o implícito, ser puta e ser santa...amei até o ódio, afinal, este nada mais é que  um grito desesperado por amor. Amei as dores, vestígios de amores, amei a Dolores. Amei sois tropicais, dominicais, domingos bestiais, luas cheias, noites vazias. Amei amar. E agora? Agora não sei... sei que não morrerei...viverei nos amores... e nas dores.”
Seria um determinismo e uma omissão medíocre se eu vos dissesse que o João apenas a via às noites e o Paulo aos dias. Claro que não. Mas, em boa parte, diante das circunstâncias, era assim que acontecia. Pior ainda é se vos dissesse que ela apenas amava os dois ou que diariamente os via. As vezes, só queria deleitar-se com a solidão, desfrutando de sua melhor companhia, ela mesma. Nesses momentos, partia em cruzadas espirituais tentando conhecer-se ou então sonegava-se chorando em posição uterina. Em outras vomitava poemas, textos ou qualquer indigestão incômoda. Era uma louca e talvez por essa razão é que sabia viver.
O padre, ao fim do seu monólogo indiferente às singularidades, faz uma oração e encerra. Aos poucos, as pessoas jogam os buquês de crisântemos e vão embora, até que resta apenas o João e o Paulo. Um vento acalentador corre pelo dormitório dos mortos. Hesitam em jogar os buquês, como se nas flores restassem o ultimo elo vivo entre eles e ela. “Que bobagem”. Pensaram, depois de certo tempo. Flores a uma flor.  De adubo viverá. De amor também.
Dão as costas à amada. Olham-se nos olhos buscando cumplicidade. Apertam as mãos fortemente. Mais uma vez, um parecia ao outro, o ultimo elo vivo. João achou familiar o anel no dedo do Paulo. Este, achou familiar o broche na blusa do João. Após um aperto de mão parecido com uma “queda de braço”, seguem caminhos diferentes. O Coveiro finalmente aparece. Enquanto joga a terra de volta a seu lugar, apagando ela como uma bucha correndo pelo quadro riscado, pensa o coveiro sobre quando terá outro homem em seu lugar, enterrando o seu corpo também. Tão bem.