(O
Mendigo - Vanessa Rosa)
Se julgassem a humanidade pelos pêlos gélidos
e olhos famintos de um mendigo, pelos meus, a condenação seria certa.
Sete a zero no tribunal do júri. As pessoas vão e voltam. Direita,
esquerda. Tão apressadas. Escravas de um ritmo alheio. Dominadas por um tempo
artificial. Não me enxergam. Passam por mim, inspiram o odor, fingem ser
lixo urbano e seguem adiante. Hey!!! Estou aqui! Sou esse espectro
fedorento e encardido. Esse imundo ponto negro em meio a multidão.. Talvez se
cantasse ou tocasse algum instrumento musical, eles me veriam. Ou quem sabe um
cartaz apocalíptico: “ O Fim está próximo do fim”. Talvez. Este irá jogar
alguma moeda:
- Obrigado! Tenha um dia agradável!
Sempre acerto. Sempre não, quase. Seria muita
pretensão. Que horas são? Pela posição do sol e gravidade dos raios solares,
diria que umas 07h20min. Vejamos então. Aquele rapaz sonolento ali. Não me dará
qualquer dinheiro, mas me informará as horas. 07h25min. Quase. Está perto de
passar o Sr. Moreira. Ele mora a umas duas quadras daqui. Todos os dias em que
passa para ir ao trabalho, lança-me uma moeda. Nada mais. É um miserável.
Fantasma para os filhos. Moedor de carne para a esposa. Placa torta indicando
o caminho do dinheiro público. Um verme humano. Lá vem ele:
- ...
Não o agradeço, afinal, o dinheiro não lhe
pertence. Aceito porque preciso. Creio que ele faça isso na ilusão de que tal
gesto sopese o seu histórico de qualidades igual às minhas vestes e anule o peso
de sua consciência. Na esperança de que o travesseiro aguente diariamente
o peso de sua cabeça e o deixe dormir. Mas o que é uma gota de sabão em meio a
um mar de lama e fezes? Inútil.
Agora é hora de desfilar a Mariana. Nunca me
deu um centavo. Não reclamo. Todos os dias, exceto nos dias em que recebe seu
salário ou não apanha do marido, passa por mim, para, olha-me com pena, molha
os olhos, faz uma careta e se entristece. Obedeço ao que me pede. Declino os
cantos da boca e enfeito o prato de miséria que eufemiza a sua
vida.
Lá vem uma criança acompanhada de seu pai.
Como gosto das crianças. São tão humanas e sinceras antes da família e escola
estragá-las. Sempre me notam, e quando me notam, percebem que há erros nesse mundo para além daqueles dos deveres de
matemática e português. Umas se entristecem verdadeiramente com a minha figura.
Umas querem me abraçar, mas são impedidas. Há outras que querem compartilhar
sua comida comigo ou me dar suas economias. Soutou as mãos das de seu
pai. Que olhar inconformado. Está sacando suas moedinhas do bolso:
-Não filha, não alimente o vício desse
alcoolista.
- Mas papai, ele está precisando...
- Já lhe disse que não! Vamos, se não você
irá se atrasar para a aula de religião.
-Lembre-se que o amor é a maior religião
mocinha!
- Cala boca, seu bêbado imundo!
Vejam vocês. Que preconceito. Acham que todos
os moradores de rua são alcoolistas. E eu aqui sóbrio desde a hora em que fui
dormir. Cada qual com suas anestesias. Compreendem perfeitamente a necessidade
de beberem para aliviar o estresse do dia a dia ou iludir os problemas.
Por que nós então não podemos também anestesiar a nossa realidade, que é
um bocadinho mais difícil? Quanto mais forte a dor, maior é a exigência de
morfina...
- Vai trabalhar vagabundo!!!
Há esses também. Acreditam que não
trabalhamos porque não queremos e que preferimos ficar deitados na rede da
preguiça. Mas é claro! É muito fácil conseguir emprego personificado de esgoto e dificuldades, bem como é bastante agradável dormir refém do frio ou estar sempre em fuga da
fome. Outros têm a crença religiosa de que é culpa exclusiva do Estado a
situação dos habitantes dos becos, ruas, bancos, escadas de igreja e das demais mazelas
sociais. E dormem tranquilos, transferindo sua fatia de responsabilidade
para uma entidade meta-física ou qualquer outra pessoa. “É sempre mais
fácil achar que a culpa é do outro, evita o aperto de mão de um possível
aliado”.
As pessoas se expressam perante mim com
sinceridade. Vomitam opiniões indigestas e pensamentos envenenados. Julgam-me
um nada. Diante do nada, não há nada com que se preocupar. É como se as roupas
dilaceradas pelo uso, a pele saudosa de banho e minha áurea de fedor
aniquilassem a minha humanidade. Para além do meu rasgado modelito do verão,
possuo um confortável colchão de papelão, um pano de derrotas invictas para os
ventos gélidos, um sanduíche bem (do) passado, a tigela com a moeda do Sr.
Moreira, um livro de poesias achado no lixo do bancário que mora três
ruas abaixo e esse pequeno cão, chamado “Liso”, que é tão meu quanto eu
sou dele, e que faz questão de me lembrar sempre sobre o que importa. No fim,
só tenho amor a oferecer, mas nesse mundo de posses, amor é coisa muito
barata para se ter.
Outrora, uma confortável vida financeira me
tinha. Contudo, esta me pregou uma peça, da qual não aplaudi no final. Mas isto
é uma outra história e demasiadamente longa. Basta saberem que eu tinha muitas
frações do deus do mercado e que os perdi. Diante disto, vocês poderiam
me questionar por que então não extirpo da face terrena, essa vida de perdas e
dificuldades materiais?
Não sejamos pessimistas fatais. A vida é um grande espetáculo de beleza e prazer. Basta que nos atentemos mais para
as comédias e contemplações do que para as tragédias e dramas. É uma delícia
apreciar o sol nascer ao fundo da livraria. Igualmente gostoso comer um pastel
de nata e saborear o doce do pastel contrastar com o atendimento da vendedora.
Tomar um café e fumar um cigarro, assistindo a elegância com que a fumaça de
ambos dançam um tango argentino. Observar o amor do casal, que flutuando sob o
banco da praça se consomem em beijos, transbordar ao chão, junto de onde os
pombos fazem as suas refeições. Agradecer à Dona Maria, pelos sorrisos
que ela joga da janela, enquanto rega de alegria as suas plantas. Oh! Doce
Maria! E mesmo nas madrugadas em que os sopros do vento confundem-se
com abraços da morte, olhar para o alto e contemplar a majestosa lua
dourada, descer humildemente dos céus.
Obrigado aos senhores e senhoras, ratos e
baratas, pela atenção. Irei me dirigir agora para a única lanchonete que me
permite entrar. A fome está a horas, talvez dias, torturando meu estômago, e
esse sanduíche é minha reserva para tempos difíceis. Como estou com
saudades de um café! Prometo que caso dê para comprar um pão, trago um pedaço
para vocês. Minhas pernas sempre a me surpreender. Levantando-me mesmo
com quantidades cada vez menores de energia. Como é brilhante os limites
quebrados pelo corpo. Não é verdade? Até breve! Espero que esteja trabalhando a
Bárbara. Gosto muito das músicas que ela põe para tocar no ambiente.
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