sábado, 24 de outubro de 2015

Mendigos de Amor

(O Mendigo - Vanessa Rosa)

Se julgassem a humanidade pelos pêlos gélidos e olhos famintos de um mendigo, pelos meus,  a condenação seria certa. Sete a zero no tribunal do júri.  As pessoas vão e voltam. Direita, esquerda. Tão apressadas. Escravas de um ritmo alheio. Dominadas por um tempo artificial. Não me enxergam. Passam por mim,  inspiram o odor, fingem ser lixo urbano e seguem adiante.  Hey!!! Estou aqui!  Sou esse espectro fedorento e encardido. Esse imundo ponto negro em meio a multidão.. Talvez se cantasse ou tocasse algum instrumento musical, eles me veriam. Ou quem sabe um cartaz apocalíptico: “ O Fim está próximo do fim”. Talvez. Este irá jogar alguma moeda:
- Obrigado! Tenha um dia agradável!
Sempre acerto. Sempre não, quase. Seria muita pretensão. Que horas são? Pela posição do sol e gravidade dos raios solares, diria que umas 07h20min. Vejamos então. Aquele rapaz sonolento ali. Não me dará qualquer dinheiro, mas me informará as horas. 07h25min. Quase. Está perto de passar o Sr. Moreira. Ele mora a umas duas quadras daqui. Todos os dias em que passa para ir ao trabalho, lança-me uma moeda. Nada mais. É um miserável. Fantasma para os filhos. Moedor de carne para a esposa. Placa torta indicando o caminho do dinheiro público. Um verme humano. Lá vem ele:
- ...
Não o agradeço, afinal, o dinheiro não lhe pertence. Aceito porque preciso. Creio que ele faça isso na ilusão de que tal gesto sopese o seu histórico de qualidades igual às minhas vestes e anule o peso de sua consciência.  Na esperança de que o travesseiro aguente diariamente o peso de sua cabeça e o deixe dormir. Mas o que é uma gota de sabão em meio a um mar de lama e fezes? Inútil.
Agora é hora de desfilar a Mariana. Nunca me deu um centavo. Não reclamo. Todos os dias, exceto nos dias em que recebe seu salário ou não apanha do marido, passa por mim, para, olha-me com pena, molha os olhos, faz uma careta e se entristece. Obedeço ao que me pede. Declino os cantos  da boca e enfeito o prato de miséria que eufemiza a sua vida. 
Lá vem uma criança acompanhada de seu pai. Como gosto das crianças. São tão humanas e sinceras antes da família e escola estragá-las. Sempre  me notam, e quando me notam, percebem que há erros nesse mundo  para além  daqueles dos deveres de matemática e português. Umas se entristecem verdadeiramente com a minha figura. Umas querem me abraçar, mas são impedidas. Há outras que querem compartilhar sua comida comigo ou me dar suas economias. Soutou as mãos  das de seu pai. Que olhar inconformado. Está sacando suas moedinhas do bolso:
-Não filha, não alimente o vício desse alcoolista.
- Mas papai, ele está precisando...
- Já lhe disse que não! Vamos, se não você irá se atrasar para a aula de religião.
-Lembre-se que o amor é a maior religião mocinha!
- Cala boca, seu bêbado imundo!
Vejam vocês. Que preconceito. Acham que todos os moradores de rua são alcoolistas. E eu aqui sóbrio desde a hora em que fui dormir. Cada qual com suas anestesias. Compreendem perfeitamente a necessidade de beberem para aliviar o estresse do dia a dia ou iludir os  problemas. Por que nós então não podemos também anestesiar a nossa realidade,  que é um bocadinho mais difícil? Quanto mais forte a dor, maior é a exigência de morfina...
- Vai trabalhar vagabundo!!!
Há esses também. Acreditam que não trabalhamos porque não queremos e que preferimos ficar deitados na rede da preguiça. Mas é claro! É muito fácil conseguir emprego personificado de esgoto e dificuldades, bem como é bastante agradável dormir refém do frio ou estar sempre em fuga da fome. Outros têm a crença religiosa de que é culpa exclusiva do Estado a situação dos habitantes dos becos, ruas, bancos, escadas de igreja e das demais mazelas sociais.  E dormem tranquilos, transferindo sua fatia de responsabilidade  para uma entidade meta-física ou qualquer outra pessoa. “É sempre mais fácil achar que a culpa é do outro, evita o aperto de mão de um possível aliado”.
As pessoas se expressam perante mim com sinceridade. Vomitam opiniões indigestas e pensamentos envenenados. Julgam-me um nada. Diante do nada, não há nada com que se preocupar. É como se as roupas dilaceradas pelo uso, a pele saudosa de banho e minha áurea de fedor aniquilassem a minha humanidade. Para além do meu rasgado modelito do verão, possuo um confortável colchão de papelão, um pano de derrotas invictas para os ventos gélidos, um sanduíche bem (do) passado, a tigela com a moeda do Sr. Moreira, um livro de poesias  achado no lixo do bancário que mora três ruas abaixo e esse pequeno cão, chamado  “Liso”, que é tão meu quanto eu sou dele, e que faz questão de me lembrar sempre sobre o que importa. No fim, só tenho amor a oferecer, mas nesse mundo de posses,  amor é coisa muito barata para se ter.
Outrora, uma confortável vida financeira me tinha. Contudo, esta me pregou uma peça, da qual não aplaudi no final. Mas isto é uma outra história e demasiadamente longa. Basta saberem que eu tinha muitas frações do deus do mercado e que os perdi. Diante disto, vocês poderiam  me questionar por que então não extirpo da face terrena, essa vida de perdas e dificuldades materiais?
Não sejamos pessimistas fatais. A vida é um grande espetáculo de beleza e prazer. Basta  que nos atentemos mais para as comédias e contemplações do que para as tragédias e dramas. É uma delícia apreciar o sol nascer ao fundo da livraria. Igualmente gostoso comer um pastel de nata e saborear o doce do pastel contrastar com o atendimento da vendedora. Tomar um café e fumar um cigarro, assistindo a elegância com que a fumaça de ambos dançam um tango argentino. Observar o amor do casal, que flutuando sob o banco da praça se consomem em beijos, transbordar ao chão, junto de onde os pombos fazem  as suas refeições. Agradecer à Dona Maria, pelos sorrisos que ela joga da janela, enquanto rega de alegria as suas plantas. Oh! Doce Maria! E mesmo nas madrugadas  em que os sopros do vento confundem-se com  abraços da morte, olhar para o alto e contemplar a majestosa lua dourada, descer humildemente dos céus.
Obrigado aos senhores e senhoras, ratos e baratas, pela atenção. Irei me dirigir agora para a única lanchonete que me permite entrar. A fome está a horas, talvez dias, torturando meu estômago, e esse sanduíche é minha reserva  para tempos difíceis. Como estou com saudades de um café! Prometo que caso dê para comprar um pão, trago um pedaço para vocês.  Minhas pernas sempre a me surpreender. Levantando-me mesmo com quantidades cada vez menores de energia. Como é brilhante os limites quebrados pelo corpo. Não é verdade? Até breve! Espero que esteja trabalhando a Bárbara. Gosto muito das músicas que ela põe para tocar no ambiente.

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