sexta-feira, 22 de julho de 2016

Quando Chove

(Today I Forgot My Umbrella – Leonid Afremov)

Todas as vezes que chove, penso comigo se não seriam as chuvas o choro dos céus. Mas ao lembrar-me do seco sertão, não consigo acreditar que poderia os céus serem tão cruéis. Porém, talvez estes estejam calejados quanto ao reiterado sofrimento e só chorem diante de alegrias. Ao ver um riso banguelo e amarelo, uma criança brincando com pedras quentes em cima de um chão rachado, a esperança molhada em prantos do sertanejo, a dança elegante sobre a miséria. Contudo, concluo que a crueldade dos céus continuaria, pois se fosse o contrário, os céus chorariam todo dia.
E cá estou eu, ajoelhado, com o queixo sobre as mãos e as mãos sobre o cume do sofá, observando as doces e salgadas lágrimas escorregarem do rosto dos céus. Meu gato Snow está ao meu lado, também a observar. Num dado momento ele me direciona seus grandes olhos azuis claro, agora tomados pela escuridão das íris diante da ausência de luz, numa expressão de angústia.
Pergunto-me se ele também estaria sentido esse cheiro que vem com as chuvas. Esse odor de terra molhada, de passado nostálgico e futuro apocalíptico, em que o presente parece estar escondido. O meu amigo felino ergue-se sobre as duas patas traseiras e me estende as patas dianteiras. Entendo o seu pedido e apesar da impossibilidade de um abraço que se enlaça, conforto-o no conforto dos meus braços.
Caminho até a cozinha e, devido à maresia trazida pela chuva, não provoco o delicioso cheiro de fumaça cafeinada, apenas esquento o café feito na insônia da noite anterior. Pego o pote de rosquinhas e sento-me à mesa. Talvez a vida seja apenas isto. Um café requentado e umas rosquinhas moles?
Os pingos d’água continuam a beijar o telhado, fabricando um barulho acalentador. Vem-me uma vontade de correr solto pela rua, com os olhos fechados e o peito aberto, permitindo a inundação da alma e o surgimento disfarçado das tímidas lágrimas, igualmente como quando corto uma cebola ou cai um cisco no olho.Mas o receio de um resfriado me faz vestir um casaco.
Não sei ao certo as circunstâncias, talvez a canção a tocar tenha servido como gatilho, mas me recordo do meu vizinho de infância, que padeceu sozinho. A humanidade desse tamanho e ele morre na companhia de ninguém. Fez por merecer? Alguém merece a solidão? Ou esta é só um grito sufocado por atenção? Será que ouvia uma canção de Raul, como fazia com frequência, em alto e bom som? Entristeceu-se ou sorriu porque ia? Teve tempo de perceber que partia? Tomava o último copo de vinho, o meu vizinho, que na presença de insetos e objetos, faleceu sozinho?
Por que tememos a felicidade? Sei que é perecível e na ânsia de aproveitá-la, acabo por antecipar o seu fim, acabo com a brincadeira, como fazia quando pequeno com as balas e pirulitos recheados, não saboreava com delicadeza, dava logo um jeito de mastigá-las. Mas devemos eternizar os momentos em que o nosso banco da roda gigante está lá no alto, perto do céu e das estrelas, permitindo-nos uma vista privilegiada da cidade iluminada, para quando o banco descer ao chão, possamos sair do parque sorridentes, sem inconformismos.

No dia de sua partida, não chovia. Ao contrário, havia um grande risco colorido nos céus e o sol sorria igual a gente quando ganha um abraço demorado daquela pessoa que gostamos. Aos poucos a queda d’água vai cessando. As interrogações vão tendo o mesmo destino. Choveu bastante lá fora. Mas a enxurrada foi aqui dentro, alagou e lavou muita coisa.

domingo, 5 de junho de 2016

Sem Apreço ao Preço

(Foto Autoral)

Encontrava-me no quarto olhando entediado para o teto. Havia alguns dias que não saia na tentativa de ficar íntimo de uma solidão forçada e artificial. De repente, o teto virou a face numa expressão de indignação. Ao declinar os olhos, vi que a parede frontal exibia a mesma expressão. Todo o quarto me olhava com reprovação e ao me pôr em pé, o chão ao invés de aceitar com submissão a força da gravidade, me empurrava para fora dali. Não me recordo se fui eu que abri a porta ou esta que com “gentileza” convidou-me a sair, apenas lembro que consegui pegar o casaco. Quando o último fio de linha saiu do quarto, a porta bateu-se com firmeza e imponência.
Do lado de fora, peguei e calcei com inveja o par de sapatos que tomava um agradável banho de sol e saí para a rua. O dia estava bem ensolarado para um dia de inverno. A saudade do céu pelo sol tinha se tornado insuportável afinal. Comecei a caminhar sem destino, havia saído de casa sem um propósito definido, ao contrário do que geralmente se faz. Ao invés de andar com os olhos atentos no chão, com a expectativa de achar algum dinheiro perdido, experimentei olhar para cima, para o teto do mundo, para as filas de árvores a desfilar, para as histórias ambulantes à minha volta, aos detalhes que costuram e  remendam as lacunas da vida e permitem uma existência mais verdadeira. Selecionei uma playlist na mente e pus para tocar com suavidade como trilha sonora daquele momento.
Senti-me estúpido ao pensar sobre o quanto caminhamos preocupados com o dinheiro por vir e os problemas decorrentes de sua ausência, enquanto o noturno céu estrelado,  o diurno céu iluminado ou o céu nublado, que trabalha sem escala definida, convida-nos a contemplá-los. Do mesmo modo fazem as árvores do outono, ao pousarem nuas em público e as saborosas flores ao exibirem-se, gratuitamente, com cor, brilho e cheiro. Mas é difícil apreciar o gratuito, quando estamos acostumados a valorizar o que se paga, o que se tem preço, e acabamos por reproduzir isso em nossas relações.
No tempo em que refletia sobre isso, esqueci-me que olhava para o alto e quase fui cegado pela beleza (da luz) solar. Ao descer os olhos vejo uma senhora passar indiferente por um mendigo que estendia uma pedinte tigela e fazer logo em seguida o fervoroso sinal da cruz. Duas dúvidas surgiram, a primeira é se a cristã senhora pedia ajuda e proteção para ela ou para o mendigo, a segunda é se eu deveria rir ou chorar daquela ironia materializada. Depois pensei comigo “É Jesus… os caras que dificultam suas palavras estão vencendo para os que tentam facilitá-las.” Estava com dificuldades financeiras por aqueles dias, mas tirei um pouco do pouco que tinha e dei ao mendigo. Senti-me culpado por ele ter agradecido, condenado por eu ter sentido alegria no meu gesto.
Continuei minha caminhada e eis que passo em frente à belíssima igreja que há um dia atrás, cobraram-me  que para eu pudesse ver sua beleza interior. Um santuário levantado por mãos vazias, enfeitada com ouro extorquido, preenchida por falidos, cobrava-me para que pudesse admirar uma beleza toda solidificada no roubo. Pensei comigo pela segunda vez: “É Jesus, você expulsou os vendilhões do templo, mas estes voltaram e associaram-se ao santuário… eles estão realmente ganhando.”
Logo à frente prendo os olhos num livro exposto em uma livraria. Havia lido o mesmo há vários giros do ponteiro atrás, após furtá-lo. Agora estava ali sendo ofertado por um preço muito maior que o de qualquer item de uma cesta básica. Quando irão perceber que alimento para a cabeça é tão necessário quanto o que acalenta a fúria de um estômago faminto? Como ousam aprisionar os pensamentos livres e vendê-los como escravos? Eles,decididamente, não têm nenhuma intenção de que os inimigos estejam informados. A barriga cheia tem serventia, a mente não.
Nenhuma novidade. Num mundo onde se paga para sobreviver, pessoas são escravizadas, sem correntes nem chicote, mas pela necessidade de ter dinheiro, para alimentar o estômago faminto, no inverno, ter água quente no chuveiro e quando morrer, ser enterrado pelo coveiro. Para pagar as anestesias sociais que aliviam, por pouco tempo, as almas escravizadas dos temores e tormentos, causados  pelos novos senhores de engenho, mas  que acabam por esconder as chaves que abrem os cativeiros.
Muitos dos alimentos da alma sofreram atribuição de preço. O teatro sorridente, as artes plásticas comoventes, a música que apenas se sente, o cinema mudo e o falador, puseram preço até nos nossos dilemas, em como expressamos o amor, a intensidade do sentimento. E cada vez está mais difícil esquivar-se dos algarismos. Mas os conselhos de amigo continuam gratuitos, assim como as reais gentilezas, os abraços amorosos, os sorrisos inocentes, as profundas respiradas e a sensação temporária de liberdade que causam, os suculentos beijos, apenas os suculentos, e se não forem de grátis, os, avisadamente, furtados.
Percebo que uso uma camisa pela qual paguei um bom preço só porque contém a caricatura de um artista por mim apreciado. O preço não valia nem o trabalho nem o material. Por um segundo, recordei-me de Gandhi e pensei em rasgar todas as minhas roupas e costurar eu mesmo as minhas vestes. Imaginei o tamanho do trabalho e o pensamento acabou por fugir. Desisti.