domingo, 5 de junho de 2016

Sem Apreço ao Preço

(Foto Autoral)

Encontrava-me no quarto olhando entediado para o teto. Havia alguns dias que não saia na tentativa de ficar íntimo de uma solidão forçada e artificial. De repente, o teto virou a face numa expressão de indignação. Ao declinar os olhos, vi que a parede frontal exibia a mesma expressão. Todo o quarto me olhava com reprovação e ao me pôr em pé, o chão ao invés de aceitar com submissão a força da gravidade, me empurrava para fora dali. Não me recordo se fui eu que abri a porta ou esta que com “gentileza” convidou-me a sair, apenas lembro que consegui pegar o casaco. Quando o último fio de linha saiu do quarto, a porta bateu-se com firmeza e imponência.
Do lado de fora, peguei e calcei com inveja o par de sapatos que tomava um agradável banho de sol e saí para a rua. O dia estava bem ensolarado para um dia de inverno. A saudade do céu pelo sol tinha se tornado insuportável afinal. Comecei a caminhar sem destino, havia saído de casa sem um propósito definido, ao contrário do que geralmente se faz. Ao invés de andar com os olhos atentos no chão, com a expectativa de achar algum dinheiro perdido, experimentei olhar para cima, para o teto do mundo, para as filas de árvores a desfilar, para as histórias ambulantes à minha volta, aos detalhes que costuram e  remendam as lacunas da vida e permitem uma existência mais verdadeira. Selecionei uma playlist na mente e pus para tocar com suavidade como trilha sonora daquele momento.
Senti-me estúpido ao pensar sobre o quanto caminhamos preocupados com o dinheiro por vir e os problemas decorrentes de sua ausência, enquanto o noturno céu estrelado,  o diurno céu iluminado ou o céu nublado, que trabalha sem escala definida, convida-nos a contemplá-los. Do mesmo modo fazem as árvores do outono, ao pousarem nuas em público e as saborosas flores ao exibirem-se, gratuitamente, com cor, brilho e cheiro. Mas é difícil apreciar o gratuito, quando estamos acostumados a valorizar o que se paga, o que se tem preço, e acabamos por reproduzir isso em nossas relações.
No tempo em que refletia sobre isso, esqueci-me que olhava para o alto e quase fui cegado pela beleza (da luz) solar. Ao descer os olhos vejo uma senhora passar indiferente por um mendigo que estendia uma pedinte tigela e fazer logo em seguida o fervoroso sinal da cruz. Duas dúvidas surgiram, a primeira é se a cristã senhora pedia ajuda e proteção para ela ou para o mendigo, a segunda é se eu deveria rir ou chorar daquela ironia materializada. Depois pensei comigo “É Jesus… os caras que dificultam suas palavras estão vencendo para os que tentam facilitá-las.” Estava com dificuldades financeiras por aqueles dias, mas tirei um pouco do pouco que tinha e dei ao mendigo. Senti-me culpado por ele ter agradecido, condenado por eu ter sentido alegria no meu gesto.
Continuei minha caminhada e eis que passo em frente à belíssima igreja que há um dia atrás, cobraram-me  que para eu pudesse ver sua beleza interior. Um santuário levantado por mãos vazias, enfeitada com ouro extorquido, preenchida por falidos, cobrava-me para que pudesse admirar uma beleza toda solidificada no roubo. Pensei comigo pela segunda vez: “É Jesus, você expulsou os vendilhões do templo, mas estes voltaram e associaram-se ao santuário… eles estão realmente ganhando.”
Logo à frente prendo os olhos num livro exposto em uma livraria. Havia lido o mesmo há vários giros do ponteiro atrás, após furtá-lo. Agora estava ali sendo ofertado por um preço muito maior que o de qualquer item de uma cesta básica. Quando irão perceber que alimento para a cabeça é tão necessário quanto o que acalenta a fúria de um estômago faminto? Como ousam aprisionar os pensamentos livres e vendê-los como escravos? Eles,decididamente, não têm nenhuma intenção de que os inimigos estejam informados. A barriga cheia tem serventia, a mente não.
Nenhuma novidade. Num mundo onde se paga para sobreviver, pessoas são escravizadas, sem correntes nem chicote, mas pela necessidade de ter dinheiro, para alimentar o estômago faminto, no inverno, ter água quente no chuveiro e quando morrer, ser enterrado pelo coveiro. Para pagar as anestesias sociais que aliviam, por pouco tempo, as almas escravizadas dos temores e tormentos, causados  pelos novos senhores de engenho, mas  que acabam por esconder as chaves que abrem os cativeiros.
Muitos dos alimentos da alma sofreram atribuição de preço. O teatro sorridente, as artes plásticas comoventes, a música que apenas se sente, o cinema mudo e o falador, puseram preço até nos nossos dilemas, em como expressamos o amor, a intensidade do sentimento. E cada vez está mais difícil esquivar-se dos algarismos. Mas os conselhos de amigo continuam gratuitos, assim como as reais gentilezas, os abraços amorosos, os sorrisos inocentes, as profundas respiradas e a sensação temporária de liberdade que causam, os suculentos beijos, apenas os suculentos, e se não forem de grátis, os, avisadamente, furtados.
Percebo que uso uma camisa pela qual paguei um bom preço só porque contém a caricatura de um artista por mim apreciado. O preço não valia nem o trabalho nem o material. Por um segundo, recordei-me de Gandhi e pensei em rasgar todas as minhas roupas e costurar eu mesmo as minhas vestes. Imaginei o tamanho do trabalho e o pensamento acabou por fugir. Desisti.

Um comentário:

  1. Tive a sensação de que vc escreve como quem carrega, além das próprias dores, o peso das dores do mundo e faz isso de forma crítica e sensível.
    P.s.: Acho que conheço esse lugar da foto. rs

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