(Foto Autoral)
Encontrava-me no quarto
olhando entediado para o teto. Havia alguns dias que não saia na tentativa de
ficar íntimo de uma solidão forçada e artificial. De repente, o teto virou a
face numa expressão de indignação. Ao declinar os olhos, vi que a parede
frontal exibia a mesma expressão. Todo o quarto me olhava com reprovação e ao
me pôr em pé, o chão ao invés de aceitar com submissão a força da gravidade, me
empurrava para fora dali. Não me recordo se fui eu que abri a porta ou esta que
com “gentileza” convidou-me a sair, apenas lembro que consegui pegar o casaco.
Quando o último fio de linha saiu do quarto, a porta bateu-se com firmeza e
imponência.
Do lado de fora, peguei e
calcei com inveja o par de sapatos que tomava um agradável banho de sol e saí
para a rua. O dia estava bem ensolarado para um dia de inverno. A saudade do
céu pelo sol tinha se tornado insuportável afinal. Comecei a caminhar sem
destino, havia saído de casa sem um propósito definido, ao contrário do que
geralmente se faz. Ao invés de andar com os olhos atentos no chão, com a
expectativa de achar algum dinheiro perdido, experimentei olhar para cima, para
o teto do mundo, para as filas de árvores a desfilar, para as histórias
ambulantes à minha volta, aos detalhes que costuram e remendam as lacunas da vida e permitem uma
existência mais verdadeira. Selecionei uma playlist na mente e pus para tocar
com suavidade como trilha sonora daquele momento.
Senti-me estúpido ao pensar
sobre o quanto caminhamos preocupados com o dinheiro por vir e os problemas
decorrentes de sua ausência, enquanto o noturno
céu estrelado, o diurno céu iluminado ou
o céu nublado, que trabalha sem escala definida, convida-nos a contemplá-los. Do
mesmo modo fazem as árvores do outono, ao pousarem nuas em público e as
saborosas flores ao exibirem-se, gratuitamente, com cor, brilho e cheiro. Mas é
difícil apreciar o gratuito, quando estamos acostumados a valorizar o que se
paga, o que se tem preço, e acabamos por reproduzir isso em nossas relações.
No tempo em que refletia
sobre isso, esqueci-me que olhava para o alto e quase fui cegado pela beleza
(da luz) solar. Ao descer os olhos vejo uma senhora passar indiferente por um
mendigo que estendia uma pedinte tigela e fazer logo em seguida o fervoroso
sinal da cruz. Duas dúvidas surgiram, a primeira é se a cristã senhora pedia
ajuda e proteção para ela ou para o mendigo, a segunda é se eu deveria rir ou
chorar daquela ironia materializada. Depois pensei comigo “É Jesus… os caras
que dificultam suas palavras estão vencendo para os que tentam facilitá-las.” Estava
com dificuldades financeiras por aqueles dias, mas tirei um pouco do pouco que
tinha e dei ao mendigo. Senti-me culpado por ele ter agradecido, condenado por
eu ter sentido alegria no meu gesto.
Continuei minha caminhada e
eis que passo em frente à belíssima igreja que há um dia atrás, cobraram-me que para eu pudesse ver sua beleza interior.
Um santuário levantado por mãos vazias, enfeitada com ouro extorquido,
preenchida por falidos, cobrava-me para que pudesse admirar uma beleza toda
solidificada no roubo. Pensei comigo pela segunda vez: “É Jesus, você expulsou
os vendilhões do templo, mas estes voltaram e associaram-se ao santuário… eles estão
realmente ganhando.”
Logo à frente prendo os
olhos num livro exposto em uma livraria. Havia lido o mesmo há vários giros do
ponteiro atrás, após furtá-lo. Agora estava ali sendo ofertado por um preço
muito maior que o de qualquer item de uma cesta básica. Quando irão perceber
que alimento para a cabeça é tão necessário quanto o que acalenta a fúria de um
estômago faminto? Como ousam aprisionar os pensamentos livres e vendê-los como
escravos? Eles,decididamente, não têm nenhuma intenção de que os inimigos
estejam informados. A barriga cheia tem serventia, a mente não.
Nenhuma novidade. Num mundo
onde se paga para sobreviver, pessoas são escravizadas, sem correntes nem
chicote, mas pela necessidade de ter dinheiro, para alimentar o estômago
faminto, no inverno, ter água quente no chuveiro e quando morrer, ser enterrado
pelo coveiro. Para pagar as anestesias sociais que aliviam, por pouco tempo, as
almas escravizadas dos temores e tormentos, causados pelos novos senhores de engenho, mas que acabam por esconder as chaves que abrem
os cativeiros.
Muitos dos alimentos da alma
sofreram atribuição de preço. O teatro sorridente, as artes plásticas
comoventes, a música que apenas se sente, o cinema mudo e o falador, puseram
preço até nos nossos dilemas, em como expressamos o amor, a intensidade do
sentimento. E cada vez está mais difícil esquivar-se dos algarismos. Mas os
conselhos de amigo continuam gratuitos, assim como as reais gentilezas, os
abraços amorosos, os sorrisos inocentes, as profundas respiradas e a sensação
temporária de liberdade que causam, os suculentos beijos, apenas os suculentos,
e se não forem de grátis, os, avisadamente, furtados.
Percebo que uso uma
camisa pela qual paguei um bom preço só porque contém a caricatura de um
artista por mim apreciado. O preço não valia nem o trabalho nem o material. Por
um segundo, recordei-me de Gandhi e pensei em rasgar todas as minhas roupas e
costurar eu mesmo as minhas vestes. Imaginei o tamanho do trabalho e o
pensamento acabou por fugir. Desisti.
Tive a sensação de que vc escreve como quem carrega, além das próprias dores, o peso das dores do mundo e faz isso de forma crítica e sensível.
ResponderExcluirP.s.: Acho que conheço esse lugar da foto. rs