(Pai e Filho em Skagen - Michael Ancher)
As lágrimas caem dos céus, deixando-se
levarem pela janela, paralelas às minhas. Tudo ao meu redor é nostálgico.
Vestígios de lembranças. Corro os olhos minuciosamente pela casa. Os momentos
vividos me inundam, afogando os mais breves pensamentos, até transbordarem-se
pelos meus olhos de novo.
A recordação de como sua breve ausência doía,
impõe-se. A frustração acampava o dia quando o seu tranquilizante riso não nos
cumprimentava. Sua dose abundante de alegria imobilizava qualquer elefante de
tristeza. Como nos tornamos dependentes de quem é alegre.
Uma tosse escapa da minha boca e anuncia a
chegada de uma virose. A lembrança de seus ensinamentos de curandeiro é
imediata. Aprendi, dentre os muitos remédios,o para virose: mel, alho e limão. A
extrair da natureza a saúde que essa oferece. Estudando-se a fundo, poderia a
farmacologia supor a insuficiência ou ineficácia de alguns remédios, mas o
elemento principal é invisível às lentes da ciência. Cuidado. Esse tentáculo do
amor é a substância mor de qualquer remédio, tratamento ou cura. Quando
o amor nos quer bem, nós nos queremos bem também.
Sinto-me levemente escorregar, e ao olhar
para o chão de cera amarela, que quando encerado brilha mais que mina de ouro,
resgato a lembrança de quando eramos colocado sobre os seus pés e dançávamos
valsas, forrós e boleros na elegância de um ballet russo. A raça humana foi
confeccionada sem a dádiva das asas e sofremos todos a frustração decorrente
disso, Ícaro que o diga. Contudo, aprendi bailando com meu pai, que com ossos
de imaginação e penas de felicidade, voa-se livre como um gavião selvagem.
Discordem quantos ornitólogos quiserem, mas só voa quem está feliz. Como os
pássaros. Pena pelas tristes galinhas e gratidão pelas baratas infelizes.
Dirijo-me ao quintal e sento numa cadeira
para fumar um cigarro. O camelo estacionado na parede cospe a lembrança de
quando ele regulou em exagero o freio dianteiro da bicicleta e ao testá-lo fui
arremessado de joelhos ao chão e por pouco não fui pisado por essa. Meu
pai que estava a me olhar correu desesperado ao meu encontro e sentiu-se
tristemente culpado. Ficou a lição. Por mais que tenhamos a boa intenção de
ajudar o outro, nem sempre seremos capazes de fazê-lo ou de estarmos livres do
insucesso, das consequências indesejadas ou da incompreensão.
Avisto, quase que escondida, a churrasqueira
enferrujada e aposentada de sua utilidade e rememoro deliciosos domingos. Ela
também deve sentir muita a falta dele. Presenciou inúmeras vezes, a pequenina
chama do fósforo nascer faminta e com rapidez correr para
abocanhar a flor de pão molhada com álcool e prostrada num copo
descartável colocado por meu pai. E num processo de crescimento, muito
mais ligeiro que o humano, tornar-se adulta e espaçosa para enfim, assar a
carne a ser saboreada na tarde do domingo. Tarde, porque como todos nós sabemos
almoçar cedo aos domingos pode causar morte instantânea.
Após a falta foi que aprendi o significado
destes momentos e outros, em que meu pai se alegrava em construir e os quais
tinha plena consciência do seu significado. A felicidade habita na simplicidade
de tudo o que constitui a vida. É clichê já desbotado, mas é sincero. E por
supormos saber é que o óbvio ululante caminha mudo e despercebido. É necessário
desprendimento e atenciosa prática para que consigamos extrair a seiva da
felicidade que bombeia nas coisas simples.
Nesses momentos, sentia uma alegria constante
e sem razões claras percorrer o ambiente. Não estava na fartura de comida, na
ausência de obrigações, na bebida distribuída nos copos nem na maresia
dominical. Estava em estarmos juntos, no cozinhar carinhoso para quem
ama, nas músicas gostosas que compuseram as trilhas sonoras dessas vivências e
que se constituem em instrumento de recordação. Estava e está nos gestos de
gentileza e no sentimento prazeroso de estar rodeado de amores e apreciar a
existência de suas presenças em nossas vidas.
A descoberta é uma loteria, pode ser algo que
traga tristeza, alegria ou ambos. Quando ouvi o sussurro da palavra maligno
e a reação de meu pai, mesmo com a pouca vivência de uma criança, compreendi o
significado. A morte anunciada traz consigo dor constante, mas também
aprendizado. A convivência diária com a morte, mesmo que não a sua,
ressignifica substancialmente como você encara a vida. Não viemos com prazo de
validade e estamos sempre tentando camuflar a nossa fugacidade. Isto não é
apologia à morbidez, é viver com sobriedade. Tornei-me a contradição de um
fruto de casca ainda verde e interior já amadurecido.
Compreendi que não temos controle sobre a
nossa morte. Da vida, temos em reduzido. As circunstâncias estão lançadas.
Temos a faculdade de interpretá-las, posicionar-nos e agir. A condução do barco
da vida nas águas do destino será de acordo à forma com que você usa sua
faculdade. Há momentos tempestuosos e desoladores. Outros de ensolarada
tranquilidade e paz. Saibamos navegar cada momento. A vida toca por reprodução
aleatória e ininterrupta, delicie-se.
Os aprendizados foram muitos,
assim como as dificuldades em continuar a relembrá-los. Ponho bebida em um copo
e acendo outro cigarro. As lágrimas continuam a escorrer como se tivessem a
recompensar as que eu impedi de nascerem. Tento sair do museu onde as
lembranças estão penduradas, mas me é muito difícil, nunca consegui equilibrar
os sentimentos antagônicos que a saudade evoca. Seleciono algumas canções (“Ê
Meu Pai”, “Retrovisor”, “Marvin”, “Vento no Litoral”, “Gostava Tanto de
Você”, "Naquela Mesa"...) e coloco para ouvir. Enquanto a saudade rasga minha alma como uma
navalha a escorrer pela pele, tento manter tão somente o sentimento de gratidão
de ter amado e ter sido amado por um anjo mortal, que, muito além de um
poderoso herói que usa a cueca sobre as calças, cumpriu a difícil missão de ser
um exemplo de amor.
Caralho meu amigo foda! Emocionante, as lágrimas vieram em meus olhos. Orgulho de ser seu amigo, continue pq sua alma brilha!
ResponderExcluirBy Tiago Nunes
Chiaccio, não poderia ter escolhido maneira melhor de matar saudade de sua "prosa". Man, parabéns pela escrita. Por um segundo deu para sentir na "pele" a sua dor.
ResponderExcluirComo diria Charles Kiefer:
"Em sua protoforma, os blogs “parecem” ser a escória de uma civilização voyeurística, o destilado mais recente da tecnificação absoluta. No entanto, como à natureza apavora o absoluto e as afirmações categóricas, ela própria se encarregará de se vingar, transformando, ainda uma vez, o periférico e marginal em central e integrado, de tal forma que os blogs poderão vir a ser a mais autêntica forma de expressão artística do século XXI.".
Segue com o blog que a gente agradece ;)
Bravo! Me identifiquei muito com o texto.. Muito bom ver escrito os sentimentos de saudade e de nostalgia que também me acometem! Parabéns, muito emocionante..
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